Aqui tão perto

Porto. Afasta de mim esse cale-se

18 agosto 2017 13:31

18 agosto 2017 13:31

Uma das coisas mais importantes para que uma cidade (ou uma pessoa, ou uma organização, ou um país) se mantenha viva e possa evoluir é a sua massa crítica. É a capacidade de se olhar ao espelho e refletir, não apenas mirando-se deslumbrada, mas pensando sobre si própria. Também por isso, uma das coisas mais saudáveis para uma cidade (como para uma pessoa ou uma organização) é saber rir de si. O humor e a crítica não são formas de atacar o orgulho que uma cidade tem em si própria. Pelo contrário, fazem parte dele e são uma manifestação de inteligência.

Perante a crítica, a ironia, a mordacidade, os poderes podem fazer duas coisas. Quando têm espírito democrático e estão seguros de si, aproveitam para pensar, riem, concordam ou discordam (não interessa), e vivem bem com isso, porque a crítica, a ironia e a mordacidade são expressão da vivacidade de um lugar. Quando os poderes não têm espírito democrático, assustam-se, enchem-se daquele sentimento pequenino e atrasado segundo o qual "uma crítica faz má figura para os outros" e, com as armas que têm, reprimem essas três manifestações da criatividade.

Foi isto que aconteceu na semana passado no Porto. Rui Moreira decidiu processar o autor (publicamente desconhecido mas a ser, supostamente, investigado com afinco pelo Departamento de Investigação e Ação Penal) de uns autocolantes que diziam "Morto. European Best Gentrification", parodiando a imagem de marca da Câmara, "Porto." e a sua campanha sobre a cidade como “European Best Destination”.

Isto é simultaneamente triste, grave e ridículo.

O gesto é triste, antes de mais, por ser uma manifestação de ignorância. O "subvertizing" (a operação que consiste em subverter, resignificando-o através da paródia, um determinado símbolo ou objeto cultural – o logotipo de uma empresa, um anúncio publicitário, um provérbio popular, um slogan, uma bandeira, uma personagem da cultura de massas...) tem uma longa tradição na cultura contemporânea. No Canadá existe há quase trinta anos uma importantíssima revista mensal dos Adbusters, que é uma organização conhecida por estas práticas. Paulo Cunha e Silva, por exemplo, atento como era a tudo o que cheirasse a contemporâneo e entusiasmado como era pelas expressões artísticas assentes no pastiche, na ironia, na colagem, na resignificação das indústrias culturais, teria sido certamente capaz de os convidar para expor na cidade (e talvez nessa ocasião o presidente lá estivesse, na inauguração, em pose cosmopolita e modernaça, como requer o amor "à cultura").

Mas o gesto é também grave. Rui Moreira perdeu (por razões políticas mas também por circunstâncias dramáticas de todos conhecidas) algumas das pessoas mais estruturantes no seu Executivo. E à medida que o tempo foi passando, os tiques conservadores, monárquicos e de uma direita em descompasso com o tempo têm-se multiplicado. Já não é a primeira vez que o verniz democrático estala no atual Presidente. Aliás, a propósito do mesmo assunto, a candidatura de Moreira já tinha movido um processo contra o Bloco (e concretamente, a candidatura de João Teixeira Lopes e João Semedo), pela alegada utilização indevida da marca "Porto.", dado que o slogan da campanha que encabeçam é "Porto: agora as pessoas". Para além da estupidez de se mover um processo por esta razão, a queixa foi estranhíssima porque quem a apresentou nem sequer foi a Câmara (a entidade que poderia contestar, se assim entendesse, uma suposta utilização indevida de um logótipo registado por si), mas sim a candidatura de Moreira, numa confusão perigosa e inaceitável entre a Câmara e essa espécie de partido unipessoal, entre o presidente e o candidato. Achar, como Moreira faz agora em nome da Câmara, que o subvertizing deve ser perseguido e proibido pelos tribunais por ser um ataque à propriedade privada dos logótipos, só cabe mesmo nas mentes limitadas que o aconselham e que, talvez não por acaso, têm ganho um peso cada vez maior nas decisões da autarquia e, agora, nas suas listas.

Finalmente, é ridículo. Como é óbvio, este tipo de ameaças só aumenta a vontade de fazer subvertizing. Os exemplos aliás multiplicaram-se na última semana, com dezenas de paródias gráficas ao logótipo em causa a florescer nas redes sociais. É bom sinal. Era só o que faltava que os cidadãos do Porto (os tais que, nas palavra de Garrett, trocam os "bês pelos vês mas não a liberdade pela servidão") se deixassem amedrontar por quem parece querer ser seu dono. Uma cidade, caro presidente, não é uma empresa, uma marca ou um balcão de negócios. É um corpo vivo que não pede autorização para existir.