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Sem caixas, sem registos e com tecnologia portuguesa: fomos visitar a loja do futuro do Continente

O telemóvel apenas é necessário para entrar na loja. Durante todo o processo de compra basta retirar os artigos das prateleiras... e sair
O telemóvel apenas é necessário para entrar na loja. Durante todo o processo de compra basta retirar os artigos das prateleiras... e sair
João Girão

Num primeiro olhar, nada de novo. É uma loja pequena, com poucos corredores distribuídos por 150 metros quadrados e organizados por secções. Mas por detrás desta loja aparentemente normal estão 230 câmaras e 400 sensores que associam os produtos que tiramos das prateleiras ao nosso carrinho de compras virtual. É um laboratório para a Sonae testar um novo conceito junto das melhores cobaias: os clientes

À primeira vista, parece um supermercado do Continente como qualquer outro. Denuncia-o apenas o aparato à porta, com uma fila de meia dúzia de interessados – e outros tantos lá dentro – que foram puxados pela curiosidade em conhecer um novo espaço no dia da sua inauguração. Uns vêm atraídos “pelo lado geek da coisa”, outros “por ser uma loja cheia de inovação” e há também quem, trabalhando na concorrência, queira vir espreitar como funciona o conceito.

À porta desta nova loja da Sonae no Arco do Cego, em Lisboa, dois funcionários vão distribuindo sacos de pano a quem não chegou munido com um para guardar as suas compras – mas dizem-nos que, para aqueles que querem realizar compras maiores, é sempre possível usar um carrinho de compras (ainda que estes não estejam visíveis).

“Bem-vindo ao Continente Labs”, lê-se num painel digital mesmo à entrada do estabelecimento. Em baixo, os torniquetes com portas de vidro – à semelhança daquilo a que estamos habituados em tantas estações de comboio ou de metro em Portugal e no estrangeiro. São estas as portas de embarque para um admirável mundo novo do retalho.

A primeira visita a esta loja do futuro implica sempre um processo inicial de instalação da aplicação do Continente Labs – um laboratório da Sonae MC para experimentar e testar junto dos clientes um conceito de loja sem filas, caixas registadoras nem registo de produtos – no smartphone. É ainda necessário inserir os dados pessoais e associar à nossa conta um cartão de débito ou de crédito, que poderá ser criado virtualmente através do MBWay. Mas atenção: para que isto funcione é preciso ter também a aplicação do Cartão Continente instalada no telemóvel, com o Continente Pay e fatura eletrónica ativos.

Uma vez feito isto, nas próximas visitas a este supermercado não será necessário passar novamente por este processo: basta apontar o QR code gerado na aplicação para o sensor instalado no torniquete e as portas abrem-se para nos deixarem passar.

Foi isto que fizemos (e permitam-nos que nos apresentemos, João e Maria João, uma vez que nesta visita quisemos viver esta experiência na primeira pessoa, como clientes). Como íamos juntos – e o João não tinha a aplicação instalada – entrámos os dois com o QR code da minha aplicação. Primeiro o João, depois eu, para que o telemóvel entrasse em último lugar. E, uma vez lá dentro, este dispositivo deixa de ser necessário.

Rápido, simples, sem grande aparato

Num primeiro olhar, nada de novo. É uma loja pequena, com poucos corredores distribuídos por 150 metros quadrados e organizados por secções: bebidas, laticínios, frutas e legumes, carne e peixe, higiene oral e cabelo, entre outras. Os produtos estão cuidadosamente organizados nas prateleiras, sem grande aparato. Um funcionário vai repondo o stock em falta e organizando os produtos fora de sítio. Nada parece denunciar a tecnologia por detrás do engenho. Mas um olhar atento em direção ao céu mostra-nos que esta não é uma loja convencional: o teto está forrado com câmaras que seguem os nossos passos dentro da loja. E as caixas registadoras não se veem em parte alguma.

Primeiro, pego numa caixa de ovos biológicos, para voltar de seguida a colocá-la na prateleira. É o João que acaba por retirar novamente essa caixa e colocá-la no saco que levo ao ombro. Já noutro corredor, ele pega numa garrafa de água de 1,5 litros e volta a repetir o gesto. Só a caixa de cereais é retirada da prateleira e colocada no saco por mim.

Durante a compra não conseguimos ver na aplicação aquilo que vamos adicionando no carrinho de compras virtual – mas, mal saímos da loja (bastando para isso passar por um torniquete, sem filas), percebemos que a fatura foi enviada para o email e a app registou duas transações distintas: os ovos e a água foram contabilizados numa transação, os cereais noutra (ambas debitadas no meu cartão). Ou seja: como entrámos com o mesmo QR code, tudo aquilo que um de nós retirou da prateleira foi debitado na minha conta – e tudo aquilo que devolvemos deixou de o ser.

Mas atenção, à entrada avisaram-nos logo que se um de nós pegasse num produto e fosse o outro a devolvê-lo à prateleira este seria debitado. “A tecnologia ainda não está suficientemente afinada para reconhecer isto como uma devolução”, diz ao Expresso Frederico Santos, diretor de Inovação e Transformação Digital da Sonae MC. “É algo em que estamos a trabalhar.”

Mas nem tudo é automatizado: no caso da vitrine onde estão guardadas as bebidas alcoólicas é necessário pedir a um funcionário para desbloquear a porta de vidro e poder aceder-lhes. “Para abrir fale connosco”, lê-se no aviso. O objetivo é evitar que menores de idade possam comprá-las.

230 câmaras e 400 sensores de prateleira

Por detrás desta loja aparentemente normal estão 230 câmaras e 400 sensores que associam os produtos que tiramos das prateleiras ao nosso carrinho de compras virtual. Suportada em machine vision, a tecnologia utiliza uma redundância de sensores de prateleiras para ter maior confiança sobre as ações dos clientes – ou seja, através do peso que é subtraído da prateleira quando o produto é retirado ou do peso que a prateleira recebe, se voltar a pousar o produto em qualquer prateleira.

O Continente consegue assim “receber, em tempo real, dados sobre os produtos colocados fora de sítio, a reposição de produtos, o tempo que as pessoas permanecem em loja, entre outros, para melhorar a experiência do cliente”, detalha ao Expresso Vasco Portugal, cofundador e presidente executivo da Sensei. Mas “estes recolhem os dados processados localmente para que nenhum vídeo saia da loja, de modo a garantir a privacidade. O retalhista apenas recebe o carrinho de compras virtual e processa a fatura”, garante Joana Rafael, cofundadora e diretora de operações da startup portuguesa, acrescentando que a Sonae e a Sensei fizeram uma avaliação de impacto de proteção de dados e concluíram que não existiam dados críticos. “As câmaras filmam a pessoa para extrair dados de vídeo que são automaticamente apagados. Não usamos reconhecimento facial nem dados biométricos, esta é uma tecnologia baseada em machine vision e inteligência artificial. É a mesma tecnologia dos carros autónomos, aplicada ao retalho.”

Durante a visita, tanto Frederico Santos como Joana Rafael e Vasco Portugal fazem questão de frisar que esta é a primeira loja totalmente autónoma de uma cadeia de hipermercados europeia. A Amazon Go abriu uma recentemente no Reino Unido, mas é uma empresa norte-americana. E mesmo a loja Pingo Doce & Go, inaugurada em 2019 no campus de Economia e Gestão da Universidade Nova, em Carcavelos, exige a utilização do telemóvel para registar os produtos comprados através de tecnologia NFC.

Os responsáveis realçam ainda que o objetivo aqui não é cortar nos recursos humanos: “nesta loja trabalham sete pessoas, o que é um número acima da média para um formato desta dimensão”, nota Vasco Portugal. “As pessoas continuam a trabalhar em loja, mas não apenas focadas na reposição de stocks. Ajudam também os clientes a orientarem-se no espaço. É um formato mais próximo de uma loja de conveniência.”

O projeto do Continente Labs nasceu em 2019 com a Sensei e a Sonae, investidora da startup. “O objetivo era abrir este espaço: uma loja de experimentação para o Continente, sem caixas”, explica Frederico Santos, acrescentando que – com o espaço, a obra, os equipamentos, o tempo das pessoas que trabalharam nos projetos – o investimento foi superior a um milhão de euros.

Questionado sobre se este será um conceito para alargar a outras lojas, assegura que ainda não existem planos nesse sentido. “Estamos primeiro a perceber o que funciona e a testar.” Mas esse pode ser um passo natural. “Podemos, por exemplo, fazer o mesmo num Continente Bom Dia, mas tudo dependerá da aprendizagem que aqui fizermos.”

Para já, a Sonae MC tem este ‘laboratório’ – aberto diariamente das 12h às 21h (um horário que poderá ser antecipado para as 8h num futuro próximo) – para testar o conceito de loja do futuro junto das melhores cobaias: os clientes.

Clientes para todos os gostos

Apesar de ser dia de inauguração, a afluência dentro da loja está controlada – até porque as regras a que a pandemia de covid-19 obriga levam a que não possam estar em loja mais de cinco pessoas por 100 metros quadrados. E é por esse motivo que uma fila de meia dúzia de clientes se acumula à porta do estabelecimento na rua Dona Filipa de Vilhena.

Pelas 15h35, uma hora e meia depois de ter aberto ao público, os sensores da loja já tinham registado 80 transações – que não correspondem necessariamente ao número de pessoas que passaram pela loja no dia da inauguração, apenas àqueles que efetivamente compraram algum produto.

Paula Reis, de 32 anos, veio ao Continente Labs apenas “por curiosidade” e por esta “ser uma loja cheia de inovação”. Apesar de viver perto e de já ser cliente do Continente, pensa que esta não vai ser uma loja para as suas compras semanais. “Não sou muito tecnológica, prefiro comprar em lojas físicas ou em mercados”, justifica. Mas reconhece que este pode ser um conceito bastante atrativo para os jovens.

E não só: à porta, veem-se pessoas de todas idades. Manuel Costa, de 47 anos, diz ter vindo “pelo lado geek da coisa”. Habituado a fazer compras em loja e na internet, destaca “o conceito espantoso e facílimo de usar”. E pensa continuar a frequentar este espaço? Satisfeito, o cliente não hesita: “Claro que sim, é um ponto sem retorno.”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: mjbourbon@expresso.impresa.pt

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