Opinião

Anatomia de um desastre anunciado

Francisco Pereira Coutinho, Emelin de Oliveira e Ana Rita Gil

Imagine um país economicamente desenvolvido em que qualquer pessoa pode entrar livremente com a sua família em busca de trabalho. Um país que não deporta quase ninguém e que tem um serviço de estrangeiros e fronteiras em processo de desmantelamento. Um país que permite a regularização permanente de migrantes em situação irregular e que ostenta uma das leis da nacionalidade mais generosas do mundo. Este paraíso migratório, paradoxalmente integrado num espaço federal de integração política crescentemente hostil ao acolhimento de migrantes económicos e refugiados, chama-se – já provavelmente adivinhou – Portugal.

Há muito boas razões que recomendam a adoção de políticas migratórias liberais e de acesso célere à cidadania. As consequências económicas do espectro do inverno demográfico decorrentes de décadas de reduzida natalidade e da fuga contínua de cérebros dificilmente podem ser contrariadas sem um elevado grau de abertura à imigração. Não há também qualquer justificação moral para condenar alguém sem recursos a viver eternamente num país pobre e sem perspetivas de desenvolvimento. A chocante disparidade de desenvolvimento entre o Norte e o Sul global tornam, aliás, inevitáveis os fluxos migratórios, sendo obviamente preferível criar formas acessíveis de imigração legal que evitem as redes de imigração clandestina e de tráfico de seres humanos. A integração social plena dos migrantes numa comunidade política nacional depende, por último, e em larga medida, do reconhecimento do estatuto jurídico-político de cidadão.

Mas uma política de fronteiras abertas é, como bem se sabe, politicamente tóxica. Ainda que implique ganhos económicos a prazo, pode ter efeitos nefastos a curto prazo sobre as pessoas mais pobres nos países de destino, deprimindo o custo do trabalho não qualificado, sobreaquecendo o mercado da habitação e aumentando a competição por prestações sociais. O sucesso de plataformas populistas nos Estados Unidos (Trump) e um pouco por toda a União Europeia (v.g. Farage, Le Pen, Orbán, Abascal ou Meloni) tem estado intimamente ligado ao alimentar do medo das consequências de uma putativa invasão migratória.

Parece ser pacífico, em todo o caso, que a questão das migrações não terá ainda afetado significativamente o sistema político português, muito provavelmente pela prosaica razão de o país não ter sido, por enquanto, sujeito a fluxos migratórios comparáveis, em termos relativos, ao americano ou ao dos restantes países da Europa Ocidental. Mas tal pode muito bem vir a ser o resultado da surpreendente consagração, em outubro de 2022, de uma nova via legal e expedita de imigração para Portugal: o visto de procura de trabalho. Qualquer pessoa oriunda do empobrecido Sul global pode agora entrar em Portugal para procurar trabalho sem grandes entraves burocráticos, salvo aqueles que resultam das dificuldades práticas de acesso aos consulados portugueses.

O visto de procura de trabalho, apesar de resolver em teoria o problema colocado pelas redes de auxílio à imigração ilegal, é uma solução que apresenta problemas à partida e à chegada. À partida, porque o objetivo imediato de combate à escassez de mão-de-obra esbarra na incapacidade dos postos consulares de responderem a um número sem precedentes de pedidos de vistos, sendo hoje vários os Estados, sobretudos dos PALOP e até o Brasil, em que é praticamente impossível obter vaga para atendimento. Não só quem quer beneficiar desta oportunidade não a consegue efetivar, como ficam ainda sem conseguir atendimento – e, assim, obter visto – todos os outros que já se encontravam à espera de viajar para Portugal, como os beneficiários de reagrupamento familiar, estudantes e pessoas que já possuem contrato de trabalho. São conhecidos os relatos de famílias que não conseguem reunir-se sem pagarem centenas de euros para “comprarem”, no mercado negro de Bissau, uma vaga de atendimento no consulado.

À chegada, porque manifestamente não contribui para o objetivo de promover migrações seguras ordenadas. O Governo tem alguma estimativa de quantas dezenas ou centenas de milhares de pessoas pretendem entrar em Portugal para procurar trabalho? Tem preparadas medidas para acolher estas pessoas que evitem a repetição dos casos noticiados de grupos de timorenses recém-chegados que viveram semanas em tendas em Lisboa? E o que vai fazer aos beneficiários de vistos que em quatro meses (ou seis meses, em caso de prorrogação) não encontrarem trabalho? Findo tal prazo, estas pessoas têm de abandonar o país… O problema é que Portugal não procede a retornos sistemáticos de pessoas em situação ilegal, como o exigem as normas europeias, o que se explica pela natureza impopular da implementação de uma política de expulsão, a qual é frequentemente vista como violadora de direitos humanos. A hipótese de um imigrante ser expulso com a sua família, especialmente se tiver filhos menores em idade escolar, é virtual. A isto acresce a circunstância de Portugal ter uma política de regularização permanente, que ficará disponível para o migrante, caso este venha a arranjar emprego mais tarde e trabalhe durante um ano.

O incentivo à imigração, que já era elevado pela situação conjuntural de pleno emprego e pela perspetiva de acesso fácil a autorização de residência e, a curto prazo, ao graal da cidadania (cinco anos de residência), torna-se irresistível, pois agora há uma via legal e fácil para o efeito. Estará o país preparado para acolher um fluxo migratório sem precedentes? A resposta é não. Os migrantes qualificados vão enfrentar o inferno burocrático da equivalência de diplomas e da necessidade de autorização prévia para o exercício de profissões regulamentadas, como a de médico ou de advogado. Muitos dos não qualificados ficarão sujeitos às vergonhosas condições observadas nas estufas de Odemira resultantes da falta de escrúpulos de empregadores e da falência dos mecanismos de fiscalização estadual. O fim das entradas irregulares no país não irá terminar com situações de exploração humana semelhantes às de Odemira, provavelmente só agravará o problema porque levará à presença no território português de um número muito significativo de pessoas desesperadas para encontrar meios de subsistência para si e para as suas famílias. As redes de tráfico de seres humanos e de exploração laboral não perderão a oportunidade para se aproveitar da disponibilidade destes migrantes para suportar temporariamente condições de trabalho sub-humanas na expetativa de aceder à proteção social decorrente da regularização da sua presença no território português e, rapidamente, aos direitos políticos inerentes ao estatuto de cidadania. Estas pessoas formam hoje, já, uma casta explorada sem direitos, que vive num limbo jurídico que se eterniza à espera de uma resposta do Estado português ao número avassalador de pedidos de autorização de residência e de nacionalidade.

Essa resposta pode tardar muitos meses, ou mesmo anos, mas chegará. E quando chegar, verificar-se-á que uma política de “portas abertas” não tem em conta que um Estado social tem capacidades de acolhimento limitadas, se quer garantir que todos os que habitam no seu território não vivam abaixo do limiar da pobreza. Se se confirmarem as perspetivas sombrias de recessão económica para os próximos anos, verificaremos a incapacidade do Estado social para suportar os encargos acrescidos com prestações sociais sem novos aumentos de impostos. Será provavelmente esse o momento em que o discurso identitário da nossa extrema-direita se vai definitivamente europeizar, esquecendo os ciganos e focando-se nos migrantes/portugueses de segunda. E talvez também seja esse o dia em que acordamos com uma Meloni como primeira-ministra.

Francisco Pereira Coutinho é professor na Nova School of Law. Ana Rita Gil é professora na Faculdade de Direito de Lisboa. Emellin de Oliveira é doutoranda na Nova School of Law.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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