Óscar Afonso, Jornal i

 

O Estado autoriza a EDP a vender seis barragens e, estranhamente, não exige nenhuma contrapartida...

Um dos maiores negócios do século realizados, em Portugal, correspondeu ao negócio real de venda de seis barragens pela EDP ao consórcio liderado pela ENGIE. Porque muitos me questionam sobre a operação, proponho-me, nesta crónica, resumir os factos mais importantes subjacentes ao negócio.

O negócio real consistiu então na venda da concessão pela EDP ao consórcio. No entanto, o negócio aparente, que o Estado autorizou à EDP é bem mais complexo. É verdade que não são conhecidos os contratos celebrados entre as partes. É certo que o Ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAAC) afirma que não os tem, parece que nem teve conhecimento deles, pelo que não terão sido analisados na validação e aprovação prévia das transmissões realizadas. Os documentos disponíveis são os enviados pelo MAAC à Assembleia da República.

Sabe-se que os direitos de exploração das barragens estavam em nome da “EDP Produção” que, pretendendo vende-los, pediu autorização ao Governo, descrevendo a operação a realizar. Tudo começaria com uma “Nova Sociedade”, ainda não constituída à data, para onde transferiria os respetivos direitos. De seguida, venderia todo o capital social da “Nova Sociedade” à “Águas Profundas” pertencente ao consórcio adquirente. Posteriormente, num prazo de 100 dias, a “Nova Sociedade” seria fundida e absorvida pela “Águas Profundas”, pelo que os direitos de exploração das seis barragens passariam para o seu ativo.

Dando sequência ao pedido, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) comunica, a 13 de novembro de 2020, que autoriza o negócio, aprovando, assim, duas transmissões: primeiro da EDP para a “Nova Sociedade” e depois desta para a “Águas Profundas”.

Assim, o Estado reconheceu que estaria garantida a continuação do cumprimento das obrigações no âmbito do contrato de concessão, mesmo que à data da decisão ainda nem sequer conhecida a “Nova Sociedade”.

Na sequência desta autorização da APA, a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), a quem compete emitir as licenças de produção dos centros electroprodutores, limita-se a comunicar que autoriza com base no Decreto-Lei n.º 172/2006. Este Decreto-Lei exige a análise de uma série de requisitos, mas a DGEG não informa se os analisou! Por carta de 25 de novembro de 2020, a REN, que é concessionária dos terrenos que foram expropriados para a construção das barragens, informa a EDP e a APA da sua “não oposição à transmissão” dessa subconcessão dos terrenos.

No dia 14 de dezembro de 2020, o Estado, através da APA, em conjunto com a REN, a EDP e a “Águas Profundas” celebraram a adenda ao contrato de concessão, onde se descreve todo o negócio de transmissão da concessão: primeiro para a “Nova Sociedade”, que ainda não existia, e depois para a “Águas Profundas”. Em resultado desta adenda, o Estado participou no negócio de transmissão de concessões de bens do domínio público a uma sociedade inexistente. Recorde-se que a APA e o Ministério do Ambiente mencionam que analisaram a “Demonstração de que o potencial adquirente possui as habilitações, capacidade técnica e financeira exigidas ao titular originário”! Neste processo, a inexistente “Nova Sociedade” assumiria a qualidade de concessionária com a primeira transmissão e assumiria também “todos os direitos e obrigações decorrentes do título de utilização de recursos hídricos”.

No dia 17 de dezembro de 2020, o negócio da venda das barragens terá sido concluído. No dia anterior foi constituída a “Camirengia”, que, aparentemente, é a até aqui designada “Nova Sociedade”, em resultado da cisão da “EDP produção”. Foi para a “Camirengia” que foram transferidos os direitos de exploração dos aproveitamentos hidroelétricos que pertenciam à EDP.A EDP, titular do capital social da “Camirengia”, alienou as suas participações sociais nesta empresa à sociedade “Águas Profunda” que, em 22/12/2020, se passa a designar “Movhera I”.

No dia 25/1/2021, é registado o projeto de fusão por incorporação, mediante “Transferência global do património” da “Camirengia” na sociedade “Movhera I”, incluindo do seu “único trabalhador”. Deste processo, resultará a “extinção” da “Camirengia” até final de 2021, que, entretanto, no dia 3 de fevereiro de 2021, passou a designar-se “Movhera II”. Com a fusão projetada, da “Camirengia / Movhera II” na “Movhera I”, consuma-se a segunda transmissão, e a venda dos direitos de exploração das barragens da EDP para o consórcio liderado pela ENGIE, que é, na realidade e apenas da EDP para a Movhera I. O processo terminará com a extinção da “Camirengia / Movhera II”.

Cinco questões emergem deste processo.

1. Em 2007, por Despacho, o Ministro Manuel Pinho, prorrogou o final dos períodos de concessão de todas as 26 barragens da EDP, incluindo as do Douro Internacional de 2029 para 2042. Por essa prorrogação, a EDP pagou 759 milhões de euros ao Estado, sendo que, deste valor, cerca de 78 milhões decorrem da prorrogação das três barragens do Douro Internacional – curiosamente as mais produtivas. Agora, o Estado autoriza a EDP a vender seis barragens, incluindo essas três, e estranhamente não exige nenhuma contrapartida!

2. O Governo estava alertado, por escrito, pelo Movimento Cultural das Terras de Miranda, para a elevada possibilidade das partes utilizarem uma construção jurídica para evitar pagamento de impostos, dados os valores envolvidos, mas ignorou este alerta.

3. O Estado não exerceu o direito de preferência e não existe nenhum vestígio que revele se foi, ou não, ponderado esse exercício, nem se foi avaliado do seu interesse, nem fundamentado o respetivo desinteresse.

4. O Estado tomou conhecimento de uma construção jurídica complexa, conforme descrita acima, que envolve diversas transmissões, quando na realidade estamos perante apenas uma. Esta construção desnecessária foi, pois, conhecida pelo Estado, que ainda assim escolheu nada fazer.

5. Em face do negócio real de venda da concessão da EDP para um consórcio liderado pela ENGIE, a lei portuguesa prevê que há lugar ao pagamento do imposto do selo. A construção jurídica apresentada pelas partes para a realização do negócio não tem racionalidade económica. A criação de uma empresa deve ter subjacente o exercício de atividade económica e, portanto, a “Nova Sociedade” serviu apenas de instrumento para fins fiscais. O que houve, foi a aparência de uma operação de reestruturação empresarial, nos termos do artigo 60.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) e do artigo 73.º e seguintes do Código do IRC.

Assim, deverá haver lugar ao pagamento de Imposto do Selo pelas transmissões das concessões para a “Camirengia / Movhera II” na operação de cisão, e desta para a “Movhera I” na concretização da fusão. Caso tal não ocorra, desde ser feita a liquidação do imposto, desconsiderando a aparência de cisão e fusão, e tributando o negócio real. Nesse caso, é devida uma penalização de 15% sobre o imposto, nos termos previstos no n.º 6 do artigo 60.º do EBF. É também devido o IRC gerado pelas respetivas mais-valias, IMT pelas transmissões dos imóveis, por ambas as transmissões, e IMI pelos imóveis onde operam as barragens.

Em suma, houve um negócio real e um negócio aparente. Somos levados a pensar que este último foi motivado pela ganância de uns, apoiada pelo Estado, contra quem não acede ao poder político, não controla os mercados, não financia as campanhas eleitorais e não compra favores.