Entrevista a Manuel Carmo Gomes

"Desconfinar gradualmente sem medo de dar passos atrás", porque "não estamos livres de nova vaga"

02 mar, 2021 - 08:20 • Teresa Almeida

Em entrevista à Renascença um ano após os primeiros casos de Covid-19 serem detetados em Portugal, o epidemiologista considera que o país falhou em outubro e não pode repetir os mesmos erros que provocaram um pico histórico de mortalidade. Agora, está na altura de pensar em desconfinar gradualmente, sem receio de fazer marcha-atrás se a situação piorar. Carmo Gomes acredita que a pandemia, no essencial, pode estar resolvida até ao final deste ano.

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O problema da pandemia de Covid-19 pode estar resolvido até ao final do ano, mas Portugal não está livre de uma nova vaga se voltar a cometer os mesmos erros. O alerta é deixado por Manuel Carmo Gomes, o prestigiado epidemiologista que foi, em diversas ocasiões, crítico da estratégica do Governo.

Em entrevista à Renascença um ano após os primeiros casos serem detetados em Portugal, o investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa considera que o país falhou em outubro e que não pode repetir erros. Agora, está na altura de pensar em desconfinar gradualmente, sem ter medo de dar passos atrás se a situação piorar.

Que conclusão podemos retirar de um ano de pandemia de Covid-19 em Portugal?

A conclusão que nós podemos tirar de 2020 é que nunca estivemos prontos para esta epidemia. O que, confesso, talvez nos tenhamos enganado é que estava toda a gente à espera que fosse um vírus da gripe e, afinal, foi um coronavírus. Não quer dizer que nós não tivéssemos tido avisos, porque tínhamos tido já dois coronavírus no início do século, mas, talvez porque os conseguimos controlar, subestimámos os coronavírus.

Portugal foi apanhado desprevenido, tal como o resto do planeta e o vírus pôs a nu uma série de fragilidades que nós tínhamos - sempre tivemos - e, neste caso concreto, aquelas que a mim e aos epidemiologistas mais afetam foi a ausência de uma recolha automatizada de informação e de falta de fluxo de informação, quer dentro do Ministério da Saúde e ainda menos do Ministério da Saúde para fora, para a comunidade científica, em geral.

Há exemplos de múltiplas plataformas informáticas que não falam entre si, por vezes, dentro do mesmo centro hospitalar, não temos os problemas relativos à proteção de dados resolvidos e à necessidade de anonimização de uma forma automática, os nossos clínicos não têm o devido apoio até com um staff dedicado a introduzir os dados nas plataformas para depois serem processados, perdem imenso tempo a preencher formulários.

Um ano depois da pandemia continuamos com esses problemas?

É evidente que, à força das circunstâncias, estes últimos aspetos têm sido melhorados. Alguns deles, não todos. Tem havido agora mais automatização na informação que é recolhida a nível clínico e laboratorial, já há plataformas informáticas a falar que não falavam, mas tudo isto tem sido o resultado de décadas de desinvestimento na área da saúde pública e da epidemiologia. Agora, já toda a gente fala no R(t), na imunidade de grupo, na incidência, na prevalência, etc... Se me dissesse há um ano que os portugueses falavam no R(t), eu juro que eu negava, não acreditava que isso seria possível.

"Portugal foi apanhado desprevenido, tal como o resto do planeta e o vírus pôs a nu uma série de fragilidades que nós tínhamos"

Como respondeu o país na primeira fase da pandemia?

Durante o mês de março tivemos uma grande subida de casos. Começou em 2 de março e, depois, houve ali um período em que nós tínhamos duplicação de casos de cinco em cinco dias e depois de sete em sete dias. Houve uma ação muito positiva do Governo português, que decidiu confinar drasticamente, no dia 16 de março, isto contra o parecer de organizações como o Conselho Nacional de Saúde Pública. Em 16 de março, tivemos uma ação muito assertiva, positiva e que depois deu origem àquela frase do "milagre português".

Não foi milagre nenhum, nós o que fizemos foi aquilo que é absolutamente necessário fazer com este vírus quando as coisas começam a disparar por aí acima, que é tomar medidas muito assertivas.

E o que é que correu mal a seguir?

Em setembro e, especialmente, em outubro cometemos um erro tremendo. Nós já tínhamos todas as luzes vermelhas. Na primeira metade de outubro de 2020, nós tínhamos já 800 a 1.200 casos por dia e andávamos com taxas de aumento de 5% a 10%. Isto foi pouco depois das escolas abrirem. Significa que o número de novos casos duplica entre uma semana a 15 dias. Isto acende todas as linhas vermelhas que se possa imaginar e nós, hoje em dia, sabemos isso.

Há aqui uma culpa coletiva, de todos nós, de não termos compreendido que aquela era a altura para fechar drasticamente. Mas eu pergunto: quais seriam os setores socioeconómicos e educacionais da nossa sociedade que aceitariam, a meio de outubro, ter fechado drasticamente, mas era isso que devíamos ter feito. Se o tivéssemos feito teríamos estado a aprender a lição que nós ensinámos aos outros em março, mas não o fizemos.

Adotámos uma série de medidas gradualistas, fomos andando atrás do vírus. Com isso, chegámos a um pico, entre 18,19 e 20 de novembro, já próximo dos 6 mil casos, uma coisa que era impensável quando tudo isto começou.

E mesmo assim não se conseguiu atuar devidamente.

Adotaram-se algumas medidas mais restritivas e, a seguir a esse pico de 18 a 20 de novembro, o número de casos começou a descer, mas não desceu o suficiente para chegarmos ao Natal numa situação confortável. Eu nem sequer culpabilizo o liberalismo que se adotou para o Natal, que todos nós reconhecemos e que tem sido reconhecido pelo Governo como um erro na altura. Mas eu, sinceramente, acho que teria sido muito difícil tirar o Natal aos portugueses. Mesmo que tivesse sido proibido o Natal, eu estou convencido que os portugueses teriam feito o seu Natal na mesma, clandestino ou semiclandestino.

Aquilo que eu acho que foi um erro foi não termos fechado drasticamente logo a meio de outubro, termos chegado ao Natal com um nível muito elevado de incidência: estávamos com 3.500 casos por dia. E isso não é aceitável com um vírus destes. E depois houve um descuido de quatro ou cinco dias no Natal, é muito claro que o número de contágios que ocorreu nos dias 25, 26, 27, 28 e 29 de dezembro estava a subir rapidamente, enquanto exatamente nesses dias o número de testes estava a descer. O que é um contrassenso.

Nós, na Faculdade de Ciências, estimámos que terão escapado, aproximadamente, cinco mil novos contágios nesses dias, que depois se propagaram. Porque quando temos cinco mil casos que não são detetados, esses cinco mil transformam-se em dez mil e por aí adiante, num curto espaço de tempo, em dois ou três dias. Basta termos o R(t) à volta de um vírgula qualquer coisa.

Esse foi o grande erro e, depois, este vírus quando parte de um nível de incidência tão elevado (3.500 casos por dia) e começa a subir explode exponencialmente e não há recursos que o consigam apanhar. Por muito que tenhamos um sistema de rastreio e isolamento de casos muito bem montado, nós não conseguimos responder a um crescimento exponencial que parte de 3.500 casos e vai subindo por aí acima, nenhum país consegue. É evidente que não se pode deixar chegar a incidência a esse nível ou então tens um sistema de testagem brutal, que consegue responder a uma coisa destas.


Foi a falta de testagem que levou ao pico da pandemia, até agora?

Não devíamos ter permitido chegar ao Natal com aquele nível e, como disse, isto devia ter começado em outubro com um controlo muito mais assertivo, quando todas as luzes vermelhas se estavam a acender.

Se tivéssemos feito nessa altura um confinamento idêntico ao que agora, não chegaríamos ao Natal com os números que chegámos?

Absolutamente. Estou convencido que não, mas eu volto a perguntar: será que a sociedade portuguesa quando nós estávamos a meio de outubro com todas as luzes vermelhas a acenderem-se teria aceitado um confinamento semelhante ao que temos agora? Será que a sociedade portuguesa aprendeu essa lição e, se nós voltarmos a uma situação dessas, as pessoas aceitam medidas de confinamento muito restritivas? É que, se não o fizerem, não aprendemos nada.

Os números baixaram drasticamente nas últimas semanas. Esta segunda-feira, o número de novos casos ficou abaixo dos 400 e o número de mortes nos 34. Mas ainda se fala que iremos ter confinamento, pelo menos, até à Páscoa.

Neste momento, os únicos indicadores que ainda estão no vermelho são os indicadores hospitalares, mas têm estado a descer. Ainda estamos com um número de pessoas em cuidados intensivos muito superior àquilo que seria desejável. Recentemente, o Dr. João Gouveia deu-nos números muito precisos na ordem das 240 camas em cuidados intensivos. Esses são os indicadores no vermelho têm atrasado mais uma decisão de desconfinamento, mas eu penso que, uma vez que os outros indicadores estão em muito melhor situação, nós estamos em altura de começar a pensar num programa gradual de desconfinamento, combinado com uma estratégia de vacinação que permita ir imunizando a população mais rapidamente possível, em paralelo com o desconfinamento.

Esta medida, recentemente anunciada, de alargar a separação entre a primeira e a segunda dose da vacina da Pfizer de três para quatro semanas, que eu ainda acho uma medida muito defensiva, acho que devíamos ter ido já muito mais longe, nomeadamente ir às seis semanas, vai permitir-nos conseguir uma cobertura adicional de mais 100 mil pessoas. Com um alargamento a seis semanas, e isto está muito bem fundamentado, nós conseguiríamos chegar às 200 mil vacinas adicionais a curto trecho para proteger uma maior fatia da população mais fragilizada na altura em que estamos a começar a pensar em planear o desconfinamento. As duas coisas devem ir em paralelo, seria muito desejável.


"Com um alargamento entre doses de seis semanas, nós conseguiríamos chegar às 200 mil vacinas adicionais a curto trecho"

O Governo vai apresentar o plano de desconfinamento a 11 de março. O que acha que o executivo devia anunciar?

Há consenso em várias coisas. Primeiro, é que devemos fazê-lo gradualmente e devemos monitorizar cuidadosamente cada uma das ações de desconfinamento que nós vamos fazer.

Na minha opinião, nós devíamos começar pelas escolas dos mais pequeninos. Há boas razões científicas e imunológicas para sustentar isso. E depois devíamos aguardar duas semanas para para ver o impacto. E não devíamos dar garantias de que os vários passos de desconfinamento planeados vão avançar, independentemente do impacto das primeiras medidas de desconfinamento.

Se as primeiras medidas de desconfinamento, por qualquer razão - nomeadamente porque temos aí as variantes, sobretudo a britânica que tem muito maior transmissibilidade - fizerem com que os nossos indicadores comecem a dar sinais de alarme, nós não podemos continuar a avançar com o desconfinamento como se nada se passasse, porque, mais uma vez, se o fizermos não aprendemos a lição.

Desconfinar gradualmente e ver com atenção, dar tempo para medirmos o impacto do desconfinamento. Depois, o que nos guia no desconfinamento são indicadores que são consensuais. Há um conjunto de indicadores epidemiológicos, como o valor do R, o número de novos casos por dia, a percentagem de testes que surgem positivos e , depois, temos também indicadores como o desempenho que o sistema de rastreamento, a resposta nos inquéritos epidemiológicos, qual é a percentagem de inquéritos que estão a ser feitos num curto espaço de tempo, de 24 horas, por exemplo, e temos também os indicadores hospitalares. O que se está a passar com a ocupação hospitalar Covid e, em particular, com os cuidados intensivos.


"Se fizermos as primeiras medidas de desconfinamento e os alarmes começarem a soar, nós não podemos continuar, na minha opinião, porque senão voltamos a cometer o mesmo erro"

Em resumo: avançar com a reabertura das escolas para os mais pequenos e dar novos passos só depois de avaliar como correu a primeira fase de desconfinamento...

É essa a minha opinião de uma atitude prudente e não começarmos a dizer que vamos dar o passo 1 e depois os passos 2, 3 e 4, independentemente do impacto que tem cada um dos passos. Se fizermos as primeiras medidas de desconfinamento e os alarmes começarem a soar, nós não podemos continuar, na minha opinião, porque senão voltamos a cometer o mesmo erro.

Isso pode significar um desconfinamento ainda mais gradual e bem mais demorado do que aquele a que estamos habituados?

A rapidez com que depois nós avançarmos será tanto maior quanto menor o impacto que o desconfinamento vai ter, porque há uma coisa que não tenhamos dúvidas, eu disse isto antes do Natal e digo agora: é que, quando começar o desconfinamento, o número de contágios vai aumentar e o R(t), o indicador epidemiológico, vai subir. Não tenhamos dúvidas nem ilusões. E, se calhar, ainda vai subir mais depressa devido à presença da variante britânica, que já é quase metade dos novos contágios que ocorrem. Temos que acompanhar.

É impossível estar a dizer a que velocidade é que vamos andar, se eu acredito que temos de monitorizar e tomar decisões em função do impacto que as primeiras medidas de desconfinamento vão ter.

Já este fim de semana estiveram quatro milhões de portugueses na rua, numa altura em que estávamos em confinamento obrigatório. Na prática, este pode ser o levantar do véu do que poderemos ter de enfrentar quando começarmos a desconfinar?

É evidente que as pessoas estão sedentas de desconfinar, de liberdade, e de aproveitar o bom tempo ainda por agora que temos uns dias excelentes. Estar cá fora na rua não significa que as pessoas estão a contagiar-se ou estão em perigo. De resto, estar na rua, de um modo geral, como de resto vimos no verão passado, é muito menos perigoso do que estar em casa, evidentemente desde que as pessoas mantenham o bom senso, de continuar a usar mascaras, em especial se não estão juntas do seu agregado familiar e deslocarem, não estarem em aglomerados e não se juntarem em locais perigosos, como é o caso de casas de banho públicas, de espaços de suporte a parais e a parques onde as pessoas se agregam. Portanto, se as pessoas evitarem isso o risco não é muito grande.

Nas reuniões do Infarmed disse que na altura do primeiro confinamento Portugal conseguiu “baixar a mola”, precisamente porque estávamos confinados e assim que saíssemos desse confinamento a mola voltaria a disparar. Pode acontecer novamente?

Repare eu também disse outra coisa…

Que era preciso testar...

Exatamente, porque quando levantamos a mola é preciso um contrapeso para ela não vir para cima e esse contrapeso chama-se testagem e rastreio feitos massivamente num tempo rápido. Nós estamos a fazer um esforço, por aquilo que tenho ouvido, para incrementar a testagem. Os resultados ainda não são visíveis, vamos ver nas próximas semanas. Esse é outro dos fatores que tem de ser tido em atenção para podermos desconfinar. Nó temos que nos certificar que quando começar a aumentar o número de casos, porque vão aumentar, nós temos de nos certificar rapidamente que somos capazes de interromper as cadeias de transmissão antes delas se iniciarem e isso só acontece com um sistema muito bem montado de testagem

E por que não se fez isso antes, já passou um ano?

Bem isso é uma pergunta que deve dirigir a vários agentes e não a um humilde professor da Faculdade de Ciências.


"Continuo otimista e estou com esperança que conseguimos resolver isto, no essencial, até ao final deste ano. Não é evidentemente a seguir à Pascoa"

Como se espera, a testagem massiva irá estar no terreno ao mesmo tempo que se desconfina. Como é que esta operação poderá acompanhar a saída das pessoas de casa e decorrer no terreno?

Eu tenho esperança que estejamos muito melhor a fazer isso, a ter mais capacidade de testagem e que consigamos acompanhar. Agora está tudo mais controlado e, se tudo correr bem, deverá descer ainda mais. Neste momento, nós temos meios, que cheguem para acompanhar uma eventual subida de contágios, mas até certo ponto. Isso tem limites, não é. Por isso é que eu digo que nó temos de acompanhar cuidadosamente dia a dia essa subida que vai ocorrer e, se virmos que a partir de certa altura as coisas estão-nos a escapar da mão, temos de atuar. E um desses indicadores é a percentagem de testes positivos que nos aparecem. Quando a percentagem de testes positivos começa a subir e ultrapassa limites, como é o caso dos 4%,5%, nó começamos a perceber que estamos a perder a mão e aí temos que emendar.

Por isso, o campo de ação dos testes é alargado?

Significa alargar os critérios de testagem e não aleatoriamente. Não só os casos de alto risco, mas também todos os possíveis contatos, mesmo de baixo risco. E depois deslocar a testagem para contextos ocupacionais. Por exemplo, testagem nas escolas, nos lares, em profissionais de saúde, em que se sabe que existe uma probabilidade elevada de haver surtos, causados pelo encontro entre as pessoas, nesses contextos. Podemos acrescentar empresas, fábricas, cantinas, onde as pessoas onde se reúnem diariamente. E ir atrás dos casos. Caso confirmado faz-se inquérito, rastreio e depois possíveis contactos dessa pessoa.


Diário de uma médica no pico da pandemia no hospital de Gaia
Diário de uma médica no pico da pandemia no hospital de Gaia

Vemos o discurso político muito cauteloso. O Presidente da República fala de desconfinamento depois da Páscoa. O primeiro-ministro só agora admitiu a palavra e para apresentar um plano. É o receio de voltarmos a ter uma situação idêntica à que tivemos em janeiro, já depois do Natal?

Eu penso que esse é um receio comum a todos nós. Mesmo as pessoas que agora andam a declinar o verbo desconfinar com muita frequência, têm receio de que nós voltemos a ter um ressurgimento, nomeadamente uma quarta onda. Porque nós não estamos livres de uma quarta onda, é muito importante que os portugueses tenham consciência disso.

A presença das variantes ameaça isso e creio que este é um receio que é transversal a todos nós, não só aos responsáveis políticos. Todos nós aprendemos, isto tem sido muito intenso. Eu não acredito que não estejamos todos apreensivos em relação às consequências deste desconfinamento e, portanto, acho normal que os dirigentes também moderem a terminologia no que diz respeito a desconfinar. Porque não podemos estar a causar falsas expectativas às pessoas e, se for preciso, teremos de dar um passo atrás. Se não o fizermos, não aprendemos.

Será normal desconfinar totalmente só depois da Páscoa?

Sim, eu continuo otimista e estou com esperança que nós conseguimos resolver isto, no essencial, até ao final deste ano. Não é evidentemente a seguir à Pascoa. Nós vamos ter de deixar passar, no mínimo, até ao verão, para termos uma vida próxima daquilo do que é normal, mesmo que o normal inclua distanciamentos e máscaras. Mas é necessário várias coisas, é necessário que mantenhamos este controlo, que as vacinas continuem a chegar e que a vacinação continue a correr normalmente e tem corrido bem.

Portanto, é a conjugação de uma série de fatores que tem que ocorrer. Se isso acontecer, eu estou convencido que começaremos a ver o aspeto positivo da vacinação já a nível de internamentos hospitalares, já na primavera. E isso é meio caminho andado, porque o problema com este vírus não são as infeções assintomáticas ou as que não conduzem ao hospital, são as hospitalizações, as mortes, os cuidados intensivos, etc. Eu tenho esperança que, por volta do verão, mais tardar, esse aspeto esteja aproximadamente resolvido. A partir daí, estamos em melhor situação de começar a normalizar a nossa vida. Certamente não vai ser logo a seguir à Páscoa.

E as novas estirpes podem influenciar o que vamos fazendo e até alterar o cenário?

Sim, sim, porque o vírus tem estado a sofrer uma pressão seletiva para mutações que aumentam a sua transmissibilidade, temos todos os indícios disso. As mutações de que mais se fala, a britânica, a sul-africana e a brasileira, caracterizam-se por serem muito parecidas, e, no entanto, apareceram em sítios diferentes. O que significa que o vírus tem sido pressionado para adquirir capacidade de maior transmissão. E isso significa que, quando nós desconfinarmos, temos um potencial aumento mais rápido de casos, porque os contágios aumentam.

É por isso que eu digo que podemos contar com isso. É evidente que as variantes influenciam. Nós estaríamos mais confortáveis se não tivéssemos a presença de mais de 40% de contágios pela variante inglesa, que já está visto que tem uma transmissibilidade muito maior. E no futuro poderão até, se a nossa imunidade celular não for capaz de responder, nós teremos de reforçar as vacinas. As pessoas terão de tomar um reforço para prevenir as novas variantes.

Agora a questão do Infarmed. Gostaria de saber se, no seu entender, as estratégias do Governo tiveram em atenção muitas das ideias defendidas nestas reuniões, pelos especialistas?

Eu penso que sim, acho que isso é inegável. Desde o início que eu senti que havia vontade deste Governo de ouvir a ciência. Isso aconteceu com regularidade, eu senti isso e é um aspeto muito positivo.


Mesmo quando o primeiro-ministro pede aos especialistas mais consenso?

Eu percebo o desejo do primeiro-ministro. Seria muito mais fácil para o Governo se houvesse um consenso, entre especialistas. Agora, uma coisa é certa, em ciência não se consegue consensos com facilidade, a ciência não funciona assim. Ainda para mais, nós estamos a lidar com uma situação que não é a situação de ciência em paz, onde tudo é feito com mais tempo. Com este vírus nós não temos hipótese de fazer isso.

Nós andamos todos a ler publicações que saíram há dois ou três dias e que ainda não foram revistas pelos pares. E temos de olhar para os laboratórios de onde elas vêm para vermos se confiamos ou não confiamos. Neste contexto a situação é difícil.

Eu compreendo que o primeiro-ministro tenha pedido isso, mas, enfim, faz-se o melhor que é possível, com o bom senso de todos, mas às vezes não há acordo, que é que eu posso dizer, não é (risos). E vimos isso no Infarmed. Muitas vezes isso deixa a decisão na mão da política e isso aconteceu um pouco aos altos e baixos, ao longo deste ano.

Foi a tal “política do ioió”, do desconfinar, não confinar...

Mais ou menos isso. Embora eu repita que Portugal deu um excelente exemplo em março e depois nós próprios não aprendemos com o nosso excelente exemplo. Houve países que, se calhar, viram o que é que nós fizemos em março e aprenderam mais com o nosso exemplo do que nós. Nós tivemos um pouco a ilusão de que seria possível gerir a situação sem medidas tao drásticas como aquelas que tomamos em março. E em outubro tínhamos uma situação de luzes vermelhas acesas e no entanto houve a ilusão de que seria possível ter um controle gradual.

"Está na altura de pensar em desconfinar gradualmente, sem ter medo de dar passos atrás se a situação piorar"

Foi nessa altura que os políticos não ouviram os especialistas?

Eu penso que os próprios especialistas aí também se devem autocriticar. Se bem que houvesse avisos de que situação se estava a deteriorar, não me pareceu que houvesse unanimidade em tomar medidas muito restritivas e decisivas nessa altura. Eu próprio nessa altura, no Infarmed, reconheci que tomar medidas restritivas devem, preferencialmente, ter aceitação social e compreensão por parte da sociedade e não seria fácil. Eu pergunto aos especialistas económicos e educativos, se aceitaram um confinamento nessa altura parecido com o que temos agora? Portanto, há aqui uma culpa coletiva, de todos nós.

Especulou-se muito sobre a sua saída das reuniões do Infarmed. Agora só lá vai se for estritamente necessário. O facto de ter assumido posições críticas em relação às politicas do Governo nesta matéria, contribuiu para a sua saída destas reuniões?

Não, eu já tinha falado com a senhora ministra da minha dificuldade em gerir tantas frentes de trabalho. Eu tenho estado na comissão técnica de vacinação, estava nesse grupo de apoio ao Infarmed, e depois iniciaram-se as aulas na minha faculdade. Eu nessa altura já tinha dito que tinha muita dificuldade em acompanhar tudo com a devida atenção, tinha de sair de uma coisa. E como eu não podia afastar-me das aulas e não queria sair da comissão da vacinação, ia afastar-me mais do Infarmed. Mas sempre me disponibilizei para trocar impressões e ajudar as esclarecer. Tenho tido participação no grupo que está a olhar para os critérios que devem conduzir o desconfinamento.

E o seu regresso ao Infarmed?

Para já não vai acontecer. As aulas só terminam em fins de abril, a comissão técnica de acompanhamento da vacinação continua com muito trabalho, novas vacinas que são aprovadas, normas, esclarecimentos que é preciso fazer, literatura que é preciso ler e explicar. Por isso, o meu regresso ao Infarmed não penso que estará para breve.

Só depois de finais de abril, quando acabarem as aulas?

Não sei, vamos ver. Logo se vê.

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