Veja abaixo o primeiro episódio da Grande Reportagem “Quando o ódio veste farda”.
Veja abaixo o segundo episódio da Grande Reportagem “Quando o ódio veste farda” na íntegra.
- PGR abre inquérito a publicações de ódio de polícias nas redes sociais
- "Quando o ódio veste farda": ministro espera investigação "célere" e defende "consequências"
Mário Brites percorre as ruas de Antuérpia, na Bélgica, exibindo confiança. De mãos dadas com Maria, a nova companheira de quem voltou a aproximar-se, 30 anos depois, na última passagem por Portugal, Mário está onde quer estar. “Vim em 2014,” recorda. Depois dos problemas que tive com o polícia Luís Maria, em 2011, percebi que Portugal já não era para mim e decidi imigrar”.
Veio para Antuérpia desafiado por um amigo. “Falso amigo”, retifica. “Prometeu-me um emprego, mas quando cheguei, desapareceu. Tive de me desenrascar”, conclui.
Em Portugal vivia em casa emprestada, mas a miséria insistia em bater-lhe à porta. Os pouco mais de 600 euros que ganhava, em 2014, não chegavam para pagar a pensão de alimentos aos filhos, nem a prestação ao advogado, que contratara para o defender no processo que lhe tinha sido movido pelo agente da PSP da esquadra do Cacém, Luís Filipe dos Prazeres Maria.
Em 2011, um divórcio recente e a vida contada ao cêntimo, impediram Mário Brites de pagar o condomínio do prédio onde vivia. O administrador do condomínio e vizinho de Mário Brites, o agente da PSP Luís Maria, mandou executar a dívida. “Foi aí que tudo começou”, recorda. “O tribunal apreendeu-me os documentos e penhorou-me o carro. Nunca mais recuperei o carro. E o Luís Maria arranjou maneira de me prender; montou-me um cilada”, conclui, plenamente convencido de não ter sido forte o suficiente para fazer valer a versão dele. “Ele tinha os colegas da esquadra do Cacém. Foram eles que me levaram preso. Se não fosse a investigação da judiciária, tinha lá ficado dentro muitos anos”. O desabafo é fundo e não disfarça o alívio.
Mário Brites foi detido em 2011. Esteve preso cinco meses. “Fui acusado inocentemente da tentativa de homicídio ao agente Luís Maria”. O sol bate-lhe em cheio nos olhos verdes. As lágrimas que lhe correm pela cara são provocadas pelo impacto da luz, mas também pelo peso dessa memória. “Foram cinco meses, que para mim foram anos. Aquilo foi muito duro. Só pensava - o que é que tinha feito para estar ali ?” Mário engasga-se, atropela as palavras, quer dizer muita coisa de rajada.
A resposta à dúvida de Mário Brites foi dada pelo tribunal de Sintra, em agosto de 2011. O coletivo de juízes absolveu-o da prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, de que vinha acusado e que lhe custara os tais cinco meses de cadeia.
A leitura do processo não deixa grande dúvidas. As provas da alegada tentativa de homicídio, que tinham convencido o juiz de instrução, revelaram-se, em julgamento, demasiado frágeis e Mário Brites foi libertado. “Quando ouvi dizer que estava livre, vim cá para fora e ajoelhei-me”, diz, levantando os braços para o ar, como se estivesse a reviver o momento.
Em 2011, um divórcio recente e a vida contada ao cêntimo, impediram Mário Brites de pagar o condomínio do prédio onde vivia. O administrador do condomínio e vizinho de Mário Brites, o agente da PSP Luís Maria, mandou executar a dívida. “Foi aí que tudo começou”, recorda. “O tribunal apreendeu-me os documentos e penhorou-me o carro. Nunca mais recuperei o carro. E o Luís Maria arranjou maneira de me prender; montou-me um cilada”, conclui, plenamente convencido de não ter sido forte o suficiente para fazer valer a versão dele. “Ele tinha os colegas da esquadra do Cacém. Foram eles que me levaram preso. Se não fosse a investigação da judiciária, tinha lá ficado dentro muitos anos”. O desabafo é fundo e não disfarça o alívio.
Luís Filipe dos Prazeres Maria é um dos 591 operacionais das forças de segurança que integram a base de dados construída por quatro investigadores digitais. Durante mais de um ano - e ajudados por polícias preocupados com o conteúdo das mensagens trocadas nos grupos fechados de Facebook por operacionais das forças de segurança – os quatro investigadores digitais identificaram 296 polícias e 295 militares da GNR.
Estão no ativo e agem online, a maioria assume o próprio nome. Pedem "uma limpeza seletiva". Dizem que há "tanta gente para abater". Insultam o Presidente da República, o primeiro-ministro e vários líderes partidários. Oferecem tiros, prometem mutilar pessoas, descrevem com detalhes sórdidos a violação sexual de uma jornalista. Chamam "raça indesejável" aos ciganos. Assumem-se como racistas.
Nas mensagens que partilha, Luís Maria valoriza a figura de Salazar, destila ódio contra os ciganos e enaltece o sargento Fahur, um antigo operacional da polícia militar brasileira e atual deputado federal. Entre outros pensamentos, Fahur afirma que “bandido bom é bandido morto”. Numa outra mensagem partilhada por Luís Maria, o autor quer recrutar um sniper “com experiência em ministros e presidentes”.
Mostrámos a Mário Brites a coleção de mensagens partilhadas por Luís Maria, que integram a base de dados. Deixámos para o fim o anúncio do recrutamento do sniper. “Ele partilha isso? Então o assassino, não sou eu. Um agente da PSP a partilhar isso? Ele devia era ter vergonha na cara”. À medida que a conversa se encaminha para o fim, Mário Brites vai dando fortes sinais de que a vingança se serve fria. A última frase de Brites é uma resposta à nossa pergunta: “Que mensagem quer deixar a Luís Maria, que irá certamente ler esta reportagem?” “Se for homem e tiver um pingo de vergonha na cara, que me peça desculpa”. Os olhos de Mário Brites brilham e não é por causa do sol. Na última frase, as lágrimas já estão secas e o sorriso preenche-lhe a cara.
Pedimos ao líder da Organização Sindical da Polícia, a OSP-PSP, sindicato de que Luís Maria é dirigente, que falasse com Luís Maria, solicitando-lhe que respondesse ao nosso apelo para um conversa. Pedro Carmo falou, mas nunca terá convencido Maria a contar-nos a sua versão dos factos.
A 25 de março de 2019, o Ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, elabora um despacho onde decide aplicar a pena de aposentação compulsiva ao agente Luís Filipe dos Prazeres Maria. “Foi tudo anulado”, garante-nos Pedro Carmo. O presidente da OSP-PSP esclarece que o advogado do sindicato conseguiu reverter a situação. “O Luís foi reintegrado e indemnizado”, regozija-se o amigo.
Vários agentes da PSP e militares da GNR que integram a base de dados usam o ex-ministro Eduardo Cabrita como autêntico saco de boxe. “Inútil de ministro. Teremos de tomar medidas mais radicais”, grita um dos polícias, identificados pelos investigadores digitais.
Francisca Van Dunem é outra das vítimas da difamação cometida por alguns destes policias. A antiga ministra da Justiça considera que o problema não deve ser desvalorizado. “Nós não estamos aqui a falar de liberdade de expressão. Há pessoas que, quando pertencem a certas instituições, têm de ter um discurso institucional. E se o discurso institucional dessas pessoas é esse, então é o discurso errado. Não estão no sítio certo…”
A mesma ideia é-nos transmitida por Anabela Cabral Ferreira, inspetora-geral da Administração Interna. “Definitivamente não queremos nas forças de segurança quem tenha ideias contrárias ao Estado de Direito.”
Esta juíza desembargadora, que tem poder disciplinar sobre as forças de segurança, explica que “as forças de segurança são autoridade do Estado, são expressão da soberania do Estado, por isso quem defenda ideias racistas, xenófobas, homofóbicas, não é bem vindo nas forças de segurança”.
Vários juristas que o Consórcio de Jornalistas de Investigação consultou consideram que os crimes praticados online por estes operacionais no ativo são claros: discriminação e incitamento ao ódio e à violência, ameaça com prática de crime, incitamento à desobediência coletiva, coação contra órgãos institucionais, instigação e apologia pública de um crime, incitamento à alteração violenta do Estado de Direito, ofensa à honra do Presidente da República, incitamento à desobediência coletiva, denegação de justiça e difamação, discriminação racial e religiosa.
A militar da GNR, que discorre sobre Bruno Candé, o ator negro assassinado a 25 de julho de 2020, pode ter incorrido num crime de discriminação racial. A militar, uma das 11 mulheres da base de dados, partilha uma notícia retirada do sítio online da CMTV, onde se afirma ter sido” lançada petição para atribuição de subsídio vitalício à família do ator Bruno Candé”. “Subsídios vitalícios?”, interroga-se a militar, “são para ser dados a pessoas que realmente precisam, não a parasitas da sociedade”. Mostrámos a mensagem a Olga Araújo, irmã do ator assassinado. Num tom sereno e pausado, Olga reage: “Nós não somos parasitas. Eu sou cozinheira, a minha mãe trabalhou a lavar loiça muitos anos, que até tinha feridas nas mãos. Temos orgulho de sermos negros, mas também temos orgulho de sermos portugueses. Quero responder diretamente [a essa militar da GNR]: Pense duas vezes antes de falar. Porque na família do Bruno Candé ninguém é parasita. E somos maioritariamente mulheres, trabalhamos nas limpezas, nas casas, nos lares de terceira idade. Que não digam isso”. Os olhos de Olga encheram-se de lágrimas, o queixo treme. Aos 53 anos, o rosto adquiriu, de repente, os contornos infantis da criança injustiçada.
Manuel Carlos Clero, o comandante-geral da GNR, força a que pertence a militar que injuriou a família de Bruno Candé, recusou dar-nos uma entrevista. Magina da Silva, diretor nacional da PSP, também optou pelo silêncio. O ministro que tutela as duas forças de segurança, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, fez o mesmo.
Quem é escolhido para trabalhar na PSP ou na GNR aceita duas regras. A “subordinação ao interesse público” e a “defesa da legalidade democrática, da segurança interna e dos direitos fundamentais dos cidadãos, nos termos da Constituição e da lei”.
Esse foi o primeiro compromisso a ser quebrado por estes agentes da PSP e militares da GNR.
Alguns agentes da PSP, revoltados com a impunidade de que gozam os colegas que usam as redes sociais para organizar grupos racistas e violentos, forneceram os caminhos para a investigação. A entrada de novos membros em grupos fechados do Facebook só é autorizada a quem demonstrar que pertence à PSP ou à GNR, e foram esses agentes críticos que facultaram aos investigadores digitais as credenciais necessárias. O consórcio de jornalistas de investigação teve acesso a uma base de dados obtida dentro das próprias redes sociais. Através do trabalho dos investigadores digitais foi possível confirmar a identidade dos perfis. Sabemos quem são estes operacionais, sabemos a que esquadra ou quartel pertencem, sabemos que posto ocupam.
Esta Grande Reportagem resulta de uma investigação dos jornalistas Pedro Coelho, Filipe Teles, Paulo Pena, Cláudia Marques Santos e Ricardo Cabral Fernandes. Tem imagem de João Venda, edição de imagem de Andrés Gutierrez, grafismo de Rui Aranha, produção editorial de Diana Matias e Rita Murtinho, pós-produção áudio de Octaviano Rodrigues e coordenação de Jorge Araújo.
Direito de resposta
Por deliberação da ERC, passamos a emitir um direito de resposta de Luís Filipe dos Prazeres Maria, agente da PSP e Dirigente da Organização Sindical das Polícias, com referência ao 1.º episódio da Grande Reportagem “Quando o ódio veste farda”, emitida no JN de 16-11-2022:
DIREITO DE RESPOSTA (por força da deliberação ERC/2023/164 (DR-TV), de 27-04-2023)
“(…)[1]
Sucintamente diz, porque reserva o apuramento de todas as responsabilidades criminais, disciplinares e civis dos autores da reportagem e órgãos de comunicação social que publicaram o seu conteúdo e dos “piratas informáticos” utilizados para aceder a grupos privados em violação da lei, para os tribunais e demais entidades competentes, que nada do que foi passado na reportagem permitia imputar-lhe, como foi feito, comportamentos de incitamento ao ódio seja contra quem for, e muito menos permitia acusá-lo de difusão de mensagens racistas ou xenófobas, os quais, aliás, a terem existido da parte de alguém, repudia veementemente.
Quanto ao processo da detenção do Sr. Mário Brites, findo há mais de 11 anos, afigura-se-lhe evidente que a sua inclusão na reportagem não mais visou que cumprir uma inexplicável intenção jornalística de expor o visado a crítica pública. Aliás, de outra forma não seria possível conseguir tal intento, pois os dois posts que a peça refere que o mesmo partilhou nas redes sociais não contêm qualquer comentário do autor da partilha, e, portanto, não possibilitavam, por si só, alcançar tal desiderato.
Não se compreende, pois, de onde surge a tendenciosa e inaceitável afirmação do jornalista ao referir “… no silêncio agressivo daqueles grupos fechados (…) o ermita Luís Maria rompe o colete de forças, enche o peito de ar e põe pimenta nas palavras.”. Palavras tais, na verdade, nunca ditas, simplesmente porque as alegadas partilhas não exibem comentários!
Assim, com o dito intuito, foram os tais dois posts (claramente parodiantes) que o visado alegadamente partilhou, exibidos propositadamente de forma intervalada e repetida ao longo da reportagem, à medida que se ia introduzindo informação completamente irrealista e descontextualizada relativamente ao processo que levou à detenção e julgamento do Mário Brites, amparada por declarações do mesmo, notoriamente tendenciosas e desfasadas da prova feita em Tribunal, e demais informação que nada tinha a ver consigo, mas que da forma oportuna como foi apresentada levava a que o público o tomasse como responsável e/ou participante em todos os factos apresentados.
Para tanto, foi deturpado o resultado do julgamento, exibindo-se pequenos excertos da fundamentação do acórdão e de factos que o Tribunal entendeu dar como não provados, para colocar um rótulo de criminoso no visado, e o de vítima, com se lhe referiram ao longo de toda a peça, daquele que foi o arguido no processo e no mesmo condenado com trânsito em julgado por posse de arma de fogo proibida.
(…)[2]
Refere-se na peça que: “Mário Brites esteve preso 5 meses, o Tribunal entendeu que não havia qualquer prova que o pudesse incriminar”; “Luis Maria continuou no ativo depois de o Tribunal de Sintra ter concluído que as peças do puzzle que o agente e outros colegas da Esquadra do Cacém montaram contra Mário Brites afinal não encaixavam”; “o relato que Mário Brites nos fez encaixa no texto do acórdão”; “a versão de Luís Maria e dos colegas da PSP que o ajudaram a montar o puzzle serviu pelo menos para convencer o Juiz de Instrução que no início do processo enviou o Mário Brites para a cadeia de Lisboa.”.
É notória a intenção de convencer o público que nada do que constava da acusação aconteceu, que tudo foi orquestrado pelo visado e que nessa cabala, com única intenção de prejudicar penalmente um inocente, participaram os demais agentes da Esquadra do Cacém que intervieram na ocorrência; concedendo-se estes jornalistas a si mesmos o direito de, sem qualquer tipo de prova ou evidência, publicamente rotularem todos esses agentes de cúmplices da prática de um hediondo crime.
Esquecem-se os senhores jornalistas, porém, que o Tribunal deu como provado que o visado se envolveu em confronto físico com o Mário Brites junto do prédio do primeiro e que no decurso desta contenda, “porque o arguido Mário Brites segurou na mão uma arma de fogo, o assistente, para o desarmar desferiu-lhe uma bofetada na cara e agarrou-lhe o pulso da mão na qual aquele segurava a pistola, puxando-lhe o braço para cima, tendo sido efetuado um disparo para o ar, caindo de seguida ambos no chão.”.
Na verdade, o Tribunal apenas não considerou o disparo voluntário e não que não tivesse existido, daí absolvendo o arguido da tentativa de homicídio. Resulta bem claro do acórdão que apenas não se provou que o Mário Brites tivesse intenção de matar o visado, daí a sua absolvição em respeito pelo in dúbio pro reo e não porque o Tribunal o tivesse considerado inocente, como com evidente intencionalidade de prejudicar o visado e demais policias da esquadra do Cacém o jornalista afirma na sua reportagem.
Também se diz que em Tribunal cada polícia contou uma versão diferente e a convicção da juíza foi-se esbatendo, ilustrando esta ideia com um pequeno excerto do acórdão (“importa afirmar que nenhuma das versões apresentadas demonstrou grande coerência”), de forma a fazer com que o público ficasse, como certamente ficou, com a errada ideia que tal nota se referia às declarações dos policias ouvidos como testemunhas, quando resulta bem claro do acórdão que se fazia referência às versões opostas ali apresentadas, a defendida pelo visado na qualidade de ofendido e demandante e a apresentada pelo arguido Mário Brites. Foi este o motivo da absolvição - a dúvida gerada entre duas versões antagónicas e a falta de testemunhas relativamente ao início dos acontecimentos que pudessem corroborar uma ou outra - e não a aclamada inocência deste último.
(…)[3]
Mário Brites foi absolvido (e não declarado inocente) apenas porque não foi dado como provado que o disparo feito durante a contenda com o visado em que este lhe agarrou o pulso da mão onde aquele segurava a pistola, tivesse sido efetuado com intenções de matar.