José Carlos Sepúlveda da
Fonseca
A esquerda, quando confrontada
com os fatos, com a lógica ou com a verdade, costuma recorrer a uma arma na
qual é mestra, a invectiva e o insulto pessoal que, nos últimos tempos, no
Brasil, ganhou uma nova forma: a cusparada!
Entre esses insultos
freqüentes, esvaziado de significado mas prenhe de rancor, está o de
“fascista”. Sim, se alguém tem convicções que não alinham com a cartilha do
“politicamente correto” ou da militância engajada, será facilmente tachado de
“fascista”.
Insulto
gratuito e desonesto
O insulto é gratuito,
desonesto e visa tolher pela ofensa o debate que não se vence pela ideia.
“Os fascistas do futuro se
qualificarão a si mesmos de antifascistas!”, teria dito o grande Churchill.
Afinal, o fascismo é mesmo tão
oposto ao marxismo, o qual, nas suas diversas formas e mutações, povoa mentes e
corações de esquerdistas, que usam o termo “fascista” como insulto fácil contra
seus adversários?
Polêmica?
Recentemente eclodiu em
Portugal uma interessante polêmica nos meios jornalísticos a esse respeito.
José Rodrigues dos Santos, um
destacado jornalista, autor de romances com grande tiragem, escreveu e
comprovou em suas obras que o fascismo tem origens marxistas, o que,
por contradizer ideias feitas, “parece ter incomodado algumas almas,
incluindo políticos que, à falta de melhores argumentos, recorreram ao insulto
baixo”, nas palavras do próprio autor.
No
jornal “Público” (25.5.16), de Lisboa, Paulo Pena (*), tentou refutar
a relação entre fascismo e marxismo, com falta de rigor, com imprecisões e
inconsistências toscas.
José Rodrigues dos Santos
respondeu nas mesmas páginas do jornal “Público” (29.5.16), com um artigo
intitulado “O fascismo tem origem no marxismo”, onde expôs as ideias essenciais da viagem
do marxismo até ao fascismo e desafiou: ”Se acham que o fascismo não
tem origens marxistas, façam o favor de desmentir as provas que apresento nos
meus romances”.
Também o Prof. André Azevedo
Alves, no “Observador” (28.5.16), desfez as inconsistências do artigo de
Paulo Pena, traçando as semelhanças práticas e as ligações no plano da
genealogia das ideias do fascismo e do marxismo. Escreveu ele: “A
trajectória política de Mussolini não pode ser reduzida a um mero caso de
“transição abrupta entre ideologias adversárias”. Mussolini, figura de
proa do socialismo italiano, foi um marxista ortodoxo que admirava
incondicionalmente Marx e o tinha como uma referência absoluta no campo
doutrinal. [...] Não é por isso de estranhar que o fascismo partilhe vários
traços ideológicos centrais com o marxismo: o colectivismo, a oposição ao
liberalismo e — talvez mais importante no plano da acção política — a rejeição
do pluralismo e a apologia da violência revolucionária”.
Origens
marxistas do fascismo
Pelo interesse do tema,
partilho com os leitores a íntegra do artigo de José Rodrigues dos Santos:
“A minha afirmação de
que o fascismo tem origens marxistas parece ter incomodado algumas almas,
incluindo políticos que, à falta de melhores argumentos, recorreram ao insulto
baixo. Nada de surpreendente, até porque reconheço que a afirmação contradiz
ideias feitas e por isso precisa de ser fundamentada — o que é feito ao
pormenor em As Flores de Lótus e em O Pavilhão Púrpura.
Para quem preferir ficar-se pela rama, deixo aqui as ideias essenciais da
viagem do marxismo até ao fascismo.O marxismo surgiu num contexto de
cientifismo. Newton tinha descoberto as leis da física e Darwin as da seleção
natural. Indo no encalço desses dois vultos, e também de Hegel, Marx e Engels
anunciaram que haviam descoberto as leis da história. Tal como as leis da
física e da biologia, ambos concluíram que as leis da história eram
deterministas e independentes da vontade humana.E que leis eram essas? Eram as
do determinismo histórico, estudadas pela sua nova ciência, o socialismo
científico (tão científico, na sua opinião, quanto a física de Newton e a
biologia de Darwin). A ideia era simples: ao feudalismo sucede-se o
capitalismo, cujas contradições levarão inevitavelmente os proletários à
revolução que conduzirá ao comunismo. Nesta visão a história é teleológica e
determinista. Não é preciso ninguém fazer nada, pois a revolução do
proletariado é inevitável.
Os anos passaram e não ocorreu
nenhuma revolução, o que contradizia a teoria marxista. Como explicar isto?
Surgiram duas teses revisionistas. A primeira, do marxista alemão
Bernstein, foi a de que afinal o capitalismo não ia acabar, o operariado até
estava a melhorar o seu nível de vida e o socialismo podia perfeitamente
adaptar-se ao capitalismo. Esta corrente cresceu no SPD alemão e acabou na social-democracia
como a conhecemos hoje em dia.
A segunda tese teve origem no
marxista francês Georges Sorel. Numa obra tremendamente influente, Refléxions
sur la violence, Sorel concluiu que a revolução não era inevitável nem
seria espontânea. Teria de ser provocada. Como? Usando uma elite para guiar o
proletariado e recorrendo à violência. Seria a violência que desencadearia a
revolução.
Foi o marxismo soreliano que
conduziu ao bolchevismo e ao fascismo. Lenine leu Sorel e apropriou-se dos
conceitos revisionistas da elite, a famosa “vanguarda”, e do uso da violência.
O mesmo Sorel foi lido com atenção em Itália, em particular pelos sindicalistas
revolucionários, marxistas que adotaram a greve e a violência como formas de
desencadear a revolução.
Em paralelo, um marxista
austríaco, Otto Bauer, notou que no Império Austro-Húngaro os operários
húngaros mostravam sentimentos de solidariedade mais fortes para com os
burgueses húngaros do que para com os operários austríacos. Embora o marxismo
fosse uma corrente internacionalista, Bauer buscou legitimidade nalgumas
afirmações nacionalistas de Marx e Engels para lançar uma nova ideia
revisionista. Concluiu ele que o comportamento dos operários húngaros mostrava
que o sentimento de nação era afinal mais poderoso do que o sentimento de
classe. O nacionalismo era revolucionário, argumentou, pois galvanizaria o
proletariado para a revolução.
Esta ideia entrou em Itália
pela pena de um marxista italiano de origem alemã, Roberto Michels, e
influenciou os sindicalistas revolucionários italianos. Estes, contudo,
enfrentaram a ortodoxia dos restantes marxistas, incluindo Benito Mussolini, o
diretor do órgão oficial do partido socialista italiano, o Avanti!
Acontece que em 1911 ocorreu
um acontecimento que iria abalar as convicções ortodoxas de Mussolini: a guerra
ítalo-otomana pela Tripolitania. Mussolini opôs-se a essa guerra, mas ficou
atónito com a reacção do proletariado italiano, que exultava com as vitórias de
Itália. Michels e os sindicalistas tinham razão!, concluiu Mussolini. As
pessoas estão afinal mais dispostas a morrer pela sua pátria do que pela sua
classe.
Quando a Grande Guerra
começou, em 1914, ocorreu uma cisão no movimento socialista. A Segunda
Internacional tinha determinado que os operários dos diferentes países não
entrariam em guerra uns contra os outros, mas na hora da verdade os socialistas
alemães, franceses e britânicos apoiaram a guerra. Apenas os bolcheviques
russos e os socialistas italianos se opuseram.
O problema é que nem todos os
socialistas italianos estavam de acordo. Os sindicalistas revolucionários
queriam a entrada de Itália na guerra porque achavam que ela seria o forno onde
se forjaria o sentimento nacional dos italianos, cujo país era novo e buscava
ainda a sua identidade, e que seria o sentimento de nação que uniria o
proletariado italiano e desencadearia a revolução. Ou seja, a guerra derrubaria
o capitalismo.
Mussolini começou por manter a
linha do partido e opôs-se à entrada de Itália na guerra, mas depressa deu
razão aos sindicalistas e defendeu que os socialistas italianos deveriam seguir
o exemplo dos socialistas alemães, franceses e britânicos e apoiar a guerra.
Esta mudança de posição valeu-lhe a expulsão do partido.
Os sindicalistas
revolucionários italianos, incluindo Mussolini, fizeram então a guerra — uma
posição perfeitamente em linha com a de outros marxistas europeus, incluindo os
do SPD alemão. Quando o conflito terminou, os sindicalistas marxistas
italianos pró-guerra regressaram a casa mas foram antagonizados pelos marxistas
italianos anti-guerra. Em conflito com estes, os marxistas pró-guerra fundaram
o movimento fascista, com reivindicações como o salário mínimo, o horário
laboral de oito horas, o direito de voto para as mulheres, a participação dos
trabalhadores na gestão das fábricas, a reforma aos 55 anos e a confiscação dos
bens das congregações religiosas. Serei só eu a notar que estas
reivindicações fascistas têm origem marxista?
O seu pensamento foi
entretanto evoluindo. Recorde-se que Marx e Engels consideravam que o capitalismo
era uma fase necessária e imprescindível da história humana e que sem
capitalismo nunca haveria comunismo. Os bolcheviques renegaram esta parte do
marxismo quando preconizaram que na Rússia era possível passar diretamente de
uma sociedade feudal para o comunismo, mas neste ponto os fascistas
mantiveram-se marxistas ortodoxos ao aceitar que o capitalismo teria mesmo de
ser temporariamente cultivado em Itália.
Noutros pontos os fascistas
desviaram-se da ortodoxia marxista. Por exemplo, aproximaram-se do revisionismo
bolchevista quando abraçaram a ideia soreliana da violência provocada por uma
vanguarda e afastaram-se do marxismo e do bolchevismo quando aderiram à ideia
baueriana de que o sentimento de nação era para o proletariado mais galvanizador
do que o sentimento de classe. Isto levou-os a dizer que a luta de classes não
se aplicava a Itália porque esta era já uma nação proletária explorada pelas
nações capitalistas. A luta de classes apenas iria dividir a nação proletária,
pelo que em vez de conflitualidade deveria haver cooperação entre classes. O
chamado corporativismo.
O seu pensamento continuou a
evoluir, sobretudo em consequência do Bienio Rosso, altura em que os comunistas
italianos lançaram uma campanha de ocupação selvagem de fábricas e de
propriedades rurais. Estes eventos levaram os fascistas a afastarem-se
mais do marxismo, pois entendiam que estas ações enfraqueciam a nação, que
designavam de “classe das classes”, ao ponto de começarem a proclamar-se
anti-marxistas. Convém no entanto recordar que Mussolini esclareceu que o
fascismo objetava ao marxismo não por este ser socialista, mas por ser
anti-nacional.
Tudo isto está explicado, com
muito mais pormenor, em As Flores de Lótus e O
Pavilhão Púrpura, e curiosamente nada disto foi desmentido por ninguém. Os
meus críticos limitaram-se a constatar que os fascistas se descreviam como
anti-marxistas – e assim foi a partir de certo ponto. Mas isso nada me desmente
porque nunca disse que os fascistas, na sua fase já amadurecida, eram
marxistas. O que eu disse, e repito, é que o fascismo é um movimento de
origem marxista — o que é verdade.
Se acham que o fascismo não
tem origens marxistas, façam o favor de desmentir as provas que apresento nos
dois romances. E, já agora, aproveitem também para desmentir que o fascismo
alemão se designava nacional-socialismo. Como acham que a palavra socialismo
foi ali parar? Por acaso?“
(*) Quem se interessar pelo
que escreveu Paulo Pena, leia aqui.
Título, Imagens e Texto: José Carlos Sepúlveda da Fonseca, ABIM, 30-6-2016
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