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Ramón Font: É preciso reconhecer que Espanha é uma realidade plurinacional

Já viveu em Portugal como correspondente de vários órgãos de informação espanhóis. Agora volta com um novo desafio. É o delegado da Generalitat da Catalunha, que acaba de abrir uma representação em Lisboa.

Miguel Baltazar

Três meses depois do 25 de Abril de 1974, Ramon Font veio a Portugal. Quis ver os resultados da revolução. "Por curiosidade", explica este catalão nascido há 64 anos em Cervera. Em 1996 regressou, já na pele de jornalista "freelancer" e por cá ficou. Foi correspondente da agência Efe, da Rádio Nacional de Espanha e da TVE. Em 2006, o então Presidente da República, Jorge Sampaio, condecorou-o com a Ordem do Infante Dom Henrique, grau de Grande-Oficial.

Ramon Font assume agora um novo desafio, o de delegado da Generalitat da Catalunha em Portugal. Uma actividade sensível, dadas as reivindicações de mais autonomia ou mesmo de independência da região que agora representa institucionalmente.


Enquanto delegado da Generalitat da Catalunha em Portugal quais serão as suas prioridades?

As minhas prioridades vão ser as de de-senvolver as muito boas relações que já existem entre a Catalunha e Portugal. Em determinadas áreas talvez seja possível fazer mais qualquer coisa, por exemplo, na área da cultura, porque na área da economia as relações são excelentes, embora possam sempre crescer. Sendo a Catalunha e Portugal grandes parceiros não haverá que fazer grandes esforços, o que haverá a fazer é não incomodar ninguém, para que não se estrague um bom negócio. Portanto, a cultura e a economia serão dois pilares essenciais do trabalho desta Generalitat.

 

Quais são as razões que estão na base da existência dessa presença empresarial catalã forte em Portugal?

Em primeiro lugar porque a Catalunha é, desde há alguns séculos, um território muito potente do ponto de vista económico. A capacidade produtiva da Catalunha sempre foi um elemento essencial do dinamismo da nossa sociedade. Por exemplo, na área da cortiça, há uma relação histórica muito bonita entre a Catalunha e Portugal, que remonta ao início do século XX.

 

Qual é essa história?

Industriais catalães vieram a Portugal e desenvolveram a indústria da cortiça em várias áreas do país, nomeadamente na zona centro, mas também no Norte e no Algarve. Curiosamente, agora é o contrário. São os grandes empresários portugueses que tomaram participações importantíssimas na indústria corticeira da Catalunha, e esta relação mantém-se em moldes muito gratificantes para ambas as partes, tanto quanto sei. Na área têxtil, o primeiro grande representante da Catalunha em Portugal foi o filho de um industrial têxtil instalado na zona de Tomar, Ignacio Ribera y Rovira, que criou em Lisboa a primeira e a única casa da Catalunha em Portugal. E um dos objectivos dessa casa era o de dinamizar as relações económicas. Nós temos uma relação histórica de presença industrial catalã em Portugal, que se incrementou de uma forma extraordinária após a entrada de Portugal e de Espanha na União Europeia. Actualmente, contabilizamos a presença de quase 900 empresas catalãs em Portugal, algumas delas provavelmente delegações comerciais, mas que estão registadas nas estatísticas catalãs como tendo presença em Portugal. Mais de 25% do conjunto das exportações de Espanha para Portugal partem da Catalunha. E a Catalunha, no último mês, no conjunto de Espanha passou a ser o principal comprador de produtos portugueses, aproximadamente 16% do total. Isto significa que a relação é extraordinária. Mas nós gastaríamos que houvesse essa consciência da importância das relações.

 

O peso destas relações tem passado despercebido.

Se tornarmos mais visível esta importância, possivelmente teremos mais facilidades noutras áreas, como por exemplo a da cultura, à qual damos uma atenção especial.

 

A sua função como delegado da Generalitat da Catalunha é muito sensível, na medida em que é delegado de uma região que quer ter mais autonomia, ao mesmo tempo que existem relações diplomáticas entre dois estados, Portugal e Espanha, e há uma embaixada de Espanha. Como é que se consegue manter aqui o equilíbrio, para não ferir susceptibilidades?

Trataremos de responder a esse desafio com bom senso e sobretudo com respeito absoluto pelas responsabilidades de cada uma das partes. Nós temos naturalmente consciência do mundo em que vivemos e com quem temos de nos relacionar. No meu caso concreto, os que tomaram a decisão de me lançar este desafio são pessoas de bem na Catalunha, e uma das nossas características é a de não fazer loucuras. Somos pessoas de ordem. Eu tenho uma história de relações com Portugal de 40 anos e não tenciono estragá­-la. Pelo contrário, tenho responsabilidades acrescidas com Portugal por razões diversas e não vou fazer nada no exercício destas funções que provoque qualquer incomodidade a alguém, por mínima que seja. Quanto à embaixada de Espanha, a minha relação é correctíssima. Naturalmente que estarei à disposição da embaixada, se for chamado, porque a mim o que me interessa é que as relações entre a Catalunha e Portugal decorram da melhor forma possível e que, em nenhum momento, seja beliscada a parte essencial de tudo isto. E a parte essencial é que as relações sejam fluidas e boas para todas as partes, sem excepção.

 

Porque é que aceitou este cargo?

Aceitei porque o exercício do jornalismo passou a ser complicado para mim, por dois motivos. Em primeiro lugar porque nos últimos dez anos aceitei lugares de responsabilidade institucional que me deixaram fora do sistema do jornalismo convencional. São fases da vida, há momentos para tudo, podia ter feito mais no jornalismo, mas também foram interessantes as experiências que tive como secretário de comunicação do Governo do meu país e depois como presidente da entidade reguladora audiovisual. Finalmente, aceitei este lugar porque, basicamente, é uma grande honra e uma enorme responsabilidade. Vistas as coisas em perspectiva e assumindo que estou na recta final da minha carreira, acho que nunca poderia imaginar há 42 anos, quando vim cá pelo 25 de Abril de 1974, que teria o privilégio de representar a Catalunha em Portugal, o meu país de adopção.

 

Identifica-se como um catalão ou como um espanhol?

Isso das entidades é um bocado complicado. Eu sei perfeitamente o que sou. Eu sou catalão, mas não renego Espanha e sou português de adopção. Assumi cargos de responsabilidade em meios de comunicação espanhóis, nunca renegarei isso, pelo contrário, foram experiências magníficas. Espanha é uma realidade plurinacional e, como escrevia um grande jornalista catalão há poucos dias no La Vanguardia, é preciso não forçar as pessoas a ser aquilo que deveriam ou poderiam ser. Cada um sente a sua identidade na intimidade.

 

Quais são os traços que marcam a identidade do povo catalão?

A língua, basicamente. Aquela frase do Fernando Pessoa, "a minha pátria é a língua portuguesa", nós entendemo-la perfeitamente. Este é precisamente um dos assuntos sensíveis destes últimos tempos na Catalunha, porque há largos sectores da sociedade que estão preocupados com o futuro da língua. Afortunadamente para a Catalunha, houve milhares de cidadãos de outras partes de Espanha que optaram por esta região para desenvolverem os seus projectos de vida e abraçaram com muita naturalidade a cultura catalã e por isso, hoje em dia, podemos ver em lugares de responsabilidade na área da cultura pessoas com origem noutras partes de Espanha. E todos partilhamos a mesma sensação, a de preservar a língua, que é um património extraordinário do ponto de viste cultural e sentimental.

 

A transformação da Catalunha num estado independente é irreversível?

Não sei dar uma resposta, porque depende de muitos factores. O que parece irreversível é que a situação vai ser diferente no futuro imediato.

 

Diferente em que sentido?

Há uma larga faixa da sociedade catalã, cerca de três quartos, que reivindica o direito a decidir qual será o futuro da Catalunha em termos políticos.

 

E como é que se materializa essa vontade?

Até agora o que a Catalunha fez foi estabelecer um diálogo com o poder central espanhol. Nos últimos seis, sete anos, os esforços da Catalunha foram canalizados para um diálogo tendente a estabelecer uma convivência de forma harmoniosa, mas modificando as regras do jogo. Isto tem-se demonstrado praticamente impossível, porque não há diálogo. As repostas às reivindicações de uma parte substancial da sociedade catalã, e os partidários da independência são metade desta parte, são todas iguais: a lei, a lei e a lei. Falta resposta política. Há que dizer alguma coisa a este sector tão alargado da sociedade. Desde 2010, ano em que o Tribunal Constitucional decretou inconstitucionais alguns dos artigos do Estatuto da Autonomia, tem havido um aumento progressivo dos sectores que reclamam outra coisa.

 

Neste quadro, qual será o futuro? 

Tem de ser decidido nas urnas, em consulta popular. Acho que isto não é assim tão complicado. A Catalunha, naturalmente, respeitará o resultado dessa consulta. O que é irreversível é o sentimento de que as coisas não podem continuar iguais. No fundo, trata-se de fazer um reconhecimento muito simples, o de que Espanha é uma realidade plurinacional. Não é assim tão difícil aceitar esta realidade. Há uma convergência de pontos de vista na Catalunha, entre partidários da independência e partidários de outras formas de relacionamento com Espanha, de que isto tem de ser feito rapidamente, porque não podemos estar muito mais tempo neste estado de hesitação e angústia.

 

Caso este clima de hesitação se prolongue o que é que poderá acontecer?

Não há riscos de que possa conduzir a outra coisa, porque uma das características do chamado processo catalão é a obsessão pela via democrática, e muito especialmente pela via pacífica. Não há riscos. A sociedade catalã é muito calma e serena.

 

Uma crise social?

Não. Um dos grandes elementos que explica o sucesso da Catalunha é a coesão social e esse é um património que ninguém quer pôr em causa. Absolutamente ninguém.

cotacao A Catalunha já é a região de Espanha que mais compra produtos portugueses. Isto significa que a relação é extraordinária. 

O que está a dizer é que o pretexto da lei tem sido usado para manter o "status quo".

Julgo que sim. No século XXI, na época da globalização e das comunicações imediatas, não é possível que não haja comunicação permanente e que não haja um diálogo aberto e transparente entre todas as partes. É preciso não fazer dos textos legais, a começar na própria Constituição, textos sagrados. Todas as Constituições podem ser revistas. Em Portugal, em 40 anos, a Constituição foi revista sete vezes e não aconteceu nada. Falta vontade política.

 

Há uma componente ideológica neste desejo de autonomia ou independência. Pode­-se ligar esta vontade a uma família política?

Está demonstrado que há um partido que retirou dividendos noutros territórios devido à posição que assumiu em relação à Catalunha.

 

Está a falar do Partido Popular (PP)?

Sim. Tudo começou com uma recolha de assinaturas em toda a Espanha para pedir ao Tribunal Constitucional que declarasse inconstitucional o Estatuto de Autonomia de 2006. Que é um estatuto, como o próprio nome indica, e não uma Constituição. Um estatuto que diz no seu primeiro artigo: "A Catalunha como nacionalidade exerce o seu autogoverno, constituindo-se em comunidade autónoma de acordo com a Constituição e com este estatuto que é a norma institucional básica." Se o Partido Popular não tivesse feito a recolha de assinaturas, e quando as recolhia interrogava as pessoas, quer assinar contra a Catalunha? Isto foi descrito por um jornalista muito respeitado e nunca foi desmentido. Se tudo não tivesse começado desta forma, talvez tivesse havido diálogo e aceitação deste estatuto que foi aprovado por esmagadora maioria no Parlamento catalão, depois burilado e aprovado no Parlamento espanhol e posteriormente referendado na Catalunha. Depois de tudo isso, passados quatro anos, o estatuto foi declarado inconstitucional e aqui começou tudo. O clique produzido por esta sentença do Tribunal Constitucional foi o equivalente à sensação colectiva – não há nada a fazer, os nossos esforços são inglórios.

 

A que é que atribui esta declaração de inconstitucionalidade?

Provavelmente porque o estatuto colocava a Catalunha num patamar diferente e, provavelmente, porque este estatuto, mais cedo ou mais tarde, provocaria uma reforma da Constituição, e a evolução do actual estado das autonomias para um sistema federal. O problema da Catalunha não é de agora, é antigo, mas da parte da Catalunha sempre houve tentativas de um grande entendimento com Espanha, e de organizar o relacionamento de forma mais adequada, mas porventura, nós os catalães, também não temos feito as coisas de melhor forma.

 

Já fez algum contacto institucional com o Governo português?

Não quero extravasar os limites das minhas funções e não sei se os vou ter, mas se isso suceder não os irei divulgar.

cotacao Há uma larga faixa da sociedade catalã, cerca de três quartos, que reivindica o direito a decidir qual será o futuro da Catalunha em termos políticos.


Uma das características do chamado processo catalão é a obsessão pela via democrática, e especialmente pela via pacífica. 

Qual a avaliação que faz da forma como os portugueses olham para Espanha e para a questão catalã?

Não colocaria os portugueses num mesmo universo. Distinguiria, pelo menos, três níveis. A nível institucional há uma prudência total, um respeito absoluto pelo "status quo" e, sobretudo, nenhuma vontade de interferir. A nível intelectual há uma curiosidade enorme e aqui tomo a liberdade de destacar o papel das universidades que, como território de liberdade, abriram as portas a iniciativas de análise da situação da Catalunha, que está a hora e meia de avião, tanto de Lisboa como do Porto. E depois a nível de cidadania, de portugueses sem responsabilidades políticas nem académicas, sinto muita simpatia pela Catalunha. É lógico, somos culturas periféricas na Península e temos momentos da História que partilhamos.

 

O impasse político que se vive em Espanha beneficia, prejudica ou é indiferente para as reivindicações catalãs?

Acho que não beneficia, ao contrário do que outros possam pensar. Precisamos de um Governo diferente, que fosse mais sensível a esta coisa tão elementar de aceitar que o mundo mudou. Acho que um Governo forte em Espanha, forte não no sentido de musculado, mas sim no sentido democrático e de sensibilidade, seria melhor do que manter este impasse que não nos ajuda em nada. Precisamos de alguém com quem falar e com quem nos possamos pôr de acordo. Contrariamente ao que algumas pessoas pensam, interessa-nos um acordo, interessa-nos ir de mãos dadas, não podemos pensar num futuro que não seja assim, seja qual for a fórmula. A Catalunha continua à espera de saber qual é a proposta que faz o Estado central para resolver o conflito. Mas isso não deve afectar as relações com o exterior e não devemos envolver ninguém no nosso problema. O problema tem de ser resolvido internamente. O facto de haver representações da Catalunha no exterior é porque queremos ter voz própria no contexto internacional. Aos que tanto invocam as leis e as normas eu devo ler a página 130 do nosso estatuto, capítulo III, artigo 193, o qual estabelece que a Generalitat tem de impulsionar a projecção da Catalunha no exterior e promover os interesses neste âmbito, respeitando a competência do Estado em matéria de relações exteriores. Nós queremos ter voz própria, de forma clara, em matérias que são da nossa competência e que são praticamente todas, excepto as questões da defesa, da segurança e de soberania do Estado. Nós temos, não apenas o direito, mas também a obrigação, de fazer este trabalho no exterior. Mas podem todos ficar descansados que esta delegação não servirá para provocar qualquer incidente ou equívoco, por mais mínimo que seja. 

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