Neoliberalismo à portuguesa (II)

O programa da Iniciativa Liberal é exactamente aquilo que aparenta ser – um projecto de classe. Ou melhor, a fronda de uma classe que acha que a democracia portuguesa já foi longe demais em termos de justiça social e económica.

Por interesse profissional, li as 614 páginas do programa eleitoral da Iniciativa Liberal. Que este partido tenha produzido um paradigma de documento burocrático é apenas uma das muitas contradições do neoliberalismo. Proponho, então, que naveguemos as águas opacas de um texto repleto de informação duplicada, com uma mescla de propostas vagas com outras absurdamente detalhadas e saturado de lugares-comuns e muitos anglicismos.

Por isto tudo, importa sublinhar que, na mundivisão neoliberal, a burocracia é um monopólio do Estado e que a sua eliminação passa pela constante revisão de procedimentos e monitorização de funcionários. Ou seja, mais burocracia. Mas não se julgue que esta assenta num “corte cego de custos”, até porque existem planos para promover “salários competitivos na Administração Pública, em especial nos seus níveis mais elevados”, à custa “de uma racionalização faseada do número de funcionários”. Bastava ter escrito “despedimento colectivo” e ter-se-iam economizado algumas palavras.

Para se ter ideias não basta dizê-lo, há que tê-las. O autoproclamado “partido das ideias” resume-se a um dogma único – o mercado livre é infalível e o Estado é a sua némesis –, o que leva a conclusões tão singulares como afirmar que não existe um problema de especulação imobiliária em Portugal. Antes pelo contrário, urge “libertar o sector da habitação” que se encontra prisioneiro às mãos do Estado.

Seguindo o mesmo raciocínio, a IL exige que se revogue a lei que estabelece um limite de sete alojamentos locais por proprietário nas zonas de contenção, a abolição do Imposto Municipal sobre Transacções Onerosas de Imóveis, entre outros, e que o Estado se desfaça dos seus imóveis devolutos. Entretanto, a questão das residências universitárias está já a ser resolvida pelo privado e, “com tempo, até os estudantes mais carenciados beneficiarão desta dinâmica de mercado” que se quer livre, pois “a função do Estado é apoiar quem mais necessita e não concorrer”, mesmo em casos em que apoiar implica interferir.

A bizarria argumentativa não se fica por aqui. É quase impossível descrever a fé dos neoliberais no mercado. Por exemplo, a proposta da IL de reforma do sistema de representação proporcional na Assembleia da República é exequível porque, e eis a tese, “tal como no mercado, a concorrência funcionará”. Todavia, e no mesmo programa, lemos a antítese: “as pressões concorrenciais tenderiam a levar as entidades bancárias a agir de forma nem sempre consonante com a prossecução” da estabilidade do sistema financeiro. A conclusão, desprovida tanto de síntese como de sentido, é de que a culpa é do Estado, porque este ou interfere, ou não regula. Em suma, não há bancos maus, apenas Estado péssimo. Encontramo-nos perante um raciocínio circular e à prova de qualquer lógica.

A incoerência atinge novos patamares nas secções sobre o ambiente e mundo rural. “Não se prevê nenhuma compensação financeira aos agricultores” afectados pelas políticas da IL porque a “expetativa não deve ser financeira, mas sim resolver um problema ambiental”. Palavras nobres e corajosas. Contudo, em relação à questão ambiental em si, a solução apresentada é a de mais crescimento económico sem reduzir as emissões.

Importa frisar que os neoliberais não negam as alterações climáticas, apenas rejeitam que esta seja uma emergência. Aliás, e segundo Carlos Guimarães Pinto, um dos portentos intelectuais da IL, o aparecimento de uma consciência ecológica apenas é possível após o país alcançar um certo grau de desenvolvimento económico. De acordo com a mão invisível do PIB, a China deve estar prestes a atingir o nirvana.

Todos os problemas se tornam simples quando a resposta é única. Para a reforma do Estado, a panaceia das privatizações. É um remédio que serve para justificar a capitalização do sistema de pensões (e, a propósito, “promover a participação no mercado de trabalho de pessoas em idade de reforma”); a privatização da RTP, da Caixa Geral de Depósitos e da rede de transportes do Estado; a criação de PPPs na Cultura; o “aumento e desenvolvimento da colaboração com o sector privado” nas embaixadas e “mais liberdade para contratar e despedir” nos consulados. Até a violência doméstica se combate promovendo “o investimento privado na rede de apoio à habitação para vítimas”. O sofrimento é um óptimo negócio.

A “liberdade de escolha” na Saúde e Educação é um tema recorrente e a razão apresentada para legitimar o financiamento massivo de corporações roça o anedótico: “O Estado não financia o privado, financia o aluno” (e o mesmo se aplica ao doente), uma lógica em tudo semelhante à da National Rifle Association: “As armas não matam as pessoas; as pessoas matam-se umas às outras.”

Menos conhecida é a proposta para que a Saúde passe a ser financiada através de uma taxa única sobre os salários, porque a existência de escalões “leva a uma discussão sobre o ritmo de progressividade”. Pelos vistos, a única maneira de evitar um debate enfadonho passa por taxar ricos e pobres por igual. É o argumento possível, mas não o mais inescrupuloso. Este baseia-se na instrumentalização dos mais carenciados para exigir medidas que visam substituir o princípio do bem comum pelo do lucro. Ainda sobre a Saúde, falta concluir que este plano, conjugado com o famoso “choque fiscal”, levará à degradação e eventual destruição do SNS, que é apenas e só o objectivo final da IL. Após isso, teremos a liberdade, mas não a escolha.

Todavia, o exemplo mais crasso de canalização de fundos públicos para o privado é o ainda menos conhecido Plano Ferroviário Nacional, que implicará a construção de centenas de quilómetros de ferrovia para ser depois concedida a privados. A previsível implosão da CP é negada e fundamentada, como já suspeitávamos, numa “dinâmica positiva da competição”. Esta política rentista pode ser resumida numa palavra cada vez mais querida a esta direita – subsidiodependência.

Já a famosa taxa única de IRS de 15% foi apresentada por Cotrim de Figueiredo como uma medida em que “ninguém fica a perder”. Faltou acrescentar que alguns ficarão a ganhar e muito. Ora vejamos: os dois mil milhões de perda de receita fiscal contabilizados pela IL correspondem ao valor cobrado a 4% dos agregados familiares mais ricos. E por falar em liberalidades, falta mencionar que, segundo a IL, o “nosso setor bancário é atualmente alvo de inúmeras medidas punitivas”, logo, é uma questão de justiça que se exija o fim da taxação de “bónus distribuídos a administradores empresariais”.

Mas é precisamente na taxa única que reside a chave que decifrará o chavão favorito da IL: “mais crescimento económico” – mas como? Uma das tácticas recorrentes do partido passa por enfatizar que as políticas propostas foram já testadas noutros países. No caso da taxa única, a Lituânia é apontada com um exemplo a seguir, pois ultrapassou Portugal no PIB per capita. De facto, é um caso que merece reflexão. A taxa de suicídio da Lituânia é das mais altas do mundo, sendo uma das causas a desigualdade económica, a segunda mais alta da UE. O sistema de educação pratica dos salários mais baixos da UE enquanto o desempenho académico dos estudantes se encontra abaixo da média da OCDE. Na Saúde, este país tem hoje menos 52 hospitais que em 1990 e a esperança média de vida é seis anos mais baixa do que a portuguesa. Com resultados semelhantes, a Letónia decidiu abandonar a taxa única de IRS em 2018. Por último, entre 1990 e 2020, a Lituânia perdeu um milhão dos seus 3,7 milhões de habitantes. A maioria emigrou à procura de melhores condições de vida. É uma catástrofe demográfica equivalente a uma guerra. Mas o PIB cresceu.

Ainda sobre o tema da desigualdade económica, a reacção da IL aos tumultos sofridos no Chile é sintomática. Em Novembro de 2019, o partido entregou um voto de condenação sobre a violência no país em que o objecto da sua censura não eram as assimetrias económicas que provocaram os protestos, mas “o aumento do preço dos transportes públicos por parte do Governo, uma medida que não se enquadra nos princípios do mercado livre”. Esta negação do impacto da desigualdade, conjugado com as propostas laborais da IL, clarificam categoricamente de que forma o partido pensa colocar “Portugal a crescer”.

Sem surpresas, a IL ambiciona “reduzir a complexidade administrativa nos processos de despedimento individual” e exige mais “flexibilidade na legislação laboral” – bastava ter escrito “precarizar”. Propõe também o fim do decreto do pagamento de horas extraordinárias e, a cereja no topo do bolo, a abolição do salário mínimo nacional e a sua substituição por um salário mínimo municipal. Mais uma vez, o conceito de justiça reaparece para abolir direitos básicos. A IL menciona a injustiça que é poder usufruir do mesmo salário mínimo em Lisboa e em Belmonte. É uma proposição tão espúria como alegar que criar 308 salários mínimos significa desburocratizar, mas é esclarecedora para quem procura entender a mentalidade neoliberal: não são os lisboetas pobres que merecem salários mais altos; são os belmonteses que vivem acima das suas possibilidades.

As “perguntas frequentes” do programa da IL são talvez as mais elucidativas, por incluírem questões como: “Mas isto não favorece os mais ricos?” e “Estas reformas não vão prejudicar os mais desfavorecidos?”. O leitor nunca encontra formulações inversas, o que por si é bastante esclarecedor, mas não tanto como o programa de Assistência Social, que ocupa umas modestas seis páginas. A munificência neoliberal abrange a criação de centros de alojamento para os sem-abrigo, mas sempre salvaguardando a “relação custo/qualidade”, senão haverá “cortes automáticos” e, claro, envolvendo o sector privado. A lógica é cristalina: “apoiar os mais desfavorecidos passa por criar as condições necessárias para que haja crescimento económico sustentado”. Encontramo-nos perante a versão neoliberal da máxima pombalina: sepultar os pobres; cuidar dos ricos.

O programa da IL é exactamente aquilo que aparenta ser – um projecto de classe. Ou melhor, a fronda de uma classe que acha que a democracia portuguesa já foi longe demais em termos de justiça social e económica. A aplicação deste programa implicaria o fim da democracia tal e qual como a conhecemos e a implantação de uma versão moderna de uma plutocracia censitária do século XIX. A normalidade com que a direita clássica acolhe a IL no seu regaço e a falta de escrutínio de grande parte da comunicação social não representa nada de novo. Na realidade, existe uma tendência, compreensível dada a sua natureza histriónica em focar a atenção na direita que calça bota cardada. Contudo, vale a pena lembrar que em Portugal o extremismo que conseguiu (e consegue) alcançar o poder foi sempre respeitável. Se ontem trajava cartola e gravata, hoje passeia-se de sapatilhas e blazer.

Rúben Leitão Serém é Assistant Professor na Universidade de Nottingham

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