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Fotografia: Vasco Completo
Publicado a: 23/03/2020

Entre Marte Instantânea e as DAMAS.

Vítor Rua: “As grandes revoluções não são andar à procura do que as pessoas consomem agora e dar-lhes exactamente isso”

Fotografia: Vasco Completo
Publicado a: 23/03/2020
Um artista incontornável quando se pretende falar da produção musical portuguesa, seja ela de que âmbito for, tanto em contexto mais popular como em campos de minimalismos e experimentações, Vítor Rua é um nome pelo qual temos obrigatoriamente de passar para podermos falar da história da música electrónica em Portugal, desde a introdução dos sintetizadores nos gigantes GNR por si sugerida (palavra do autor), ao influente duo Telectu com o musicólogo Jorge Lima Barreto, não descurando também a sua vasta obra a solo. Sobre essa mesmo, e debruçando-nos sobre o mais recente Electronic Music 1995-2010, lançado na estreia da Marte Instantânea, falámos com Rua sobre o passado, o presente e o futuro da sua criação musical. É curioso que o músico português seja em grande parte visto como um guitarrista, mesmo que isso tenha razão de ser. Nos vários projectos para os quais canaliza a sua produção, vemo-lo múltiplas vezes de guitarra às costas e pedaleira a acompanhar, seja em The Metaphysical Angels ou em Telectu, entre outros. No entanto, os sintetizadores sempre fizeram parte do seu arsenal, e vê-lo como um músico dum instrumento só é, na verdade, um erro. Quando perguntamos sobre isso, antes do seu concerto nas DAMAS, responde: “Vou-te dizer uma coisa que se calhar nunca disse a ninguém”, especulando que terá sido uma das primeiras pessoas a ter este instrumento em solo nacional: “Eu tive um sintetizador aos 11 anos, acho eu, portanto, em 1972. Em 1972 só devia haver para aí cinco pessoas com sintetizador em Portugal, que deviam ser o Miguel Graça Moura, o José Cid, o Jorge Lima Barreto, o Luís Ruvina e eu”. A sua presença nos primórdios desta vanguarda foi sentida, mas a guitarra foi o seu instrumento central neste período, visto que também Jorge Lima Barreto se debruçava sobre o sintetizador. Ainda sobre isso, Rua acrescenta: “Nos GNR, inclusive fui eu que introduzi o sintetizador, e tocava. Quando [estou] na fase de terminar com os GNR e começar com os Telectu, já tenho para aí três sintetizadores (um Yamaha e dois Korg), e estou quase numa tomada de decisão de me dedicar ao sintetizador (porque adorava). Quando estou quase a tomar essa decisão, conheço o Jorge Lima Barreto que toca sintetizadores e me convida a formar o grupo com ele, os Telectu. O que é que ele toca? Sintetizadores. Conclusão: eu volto para a guitarra, e deixo os sintetizadores.” No entanto, apesar de os ter vendido na época, Vítor Rua não perdeu a relação com os sintetizadores, já que o seu parceiro de grupo continuava a ter vários. “Eu nunca parei de tocar o instrumento, mas as pessoas não conheciam nem viam o trabalho [que eu fazia]. Só agora é que existem esses discos – eu a tocar Jupiter 8, a tocar SH101, a tocar Vocoder, a tocar os Monotron, a tocar o Moog, o ARP Odyssey. Só agora é que foram editados esses discos de coisas que eu gravei em 80 [e tal]”, conta-nos o músico. Em paralelo, Vítor Rua mantinha a sua produção à volta destas máquinas, mas sem ter um output para que a audiência conhecesse esse seu lado. Apesar da sua incessante produção e dos lançamentos mais informais ou em formato digital, há muitas fitas por ouvir desta fase paralela à dos Telectu, durante as últimas décadas do século XX. Voltaremos a isso. Em Electronic Music 1995-2010 é clara a presença do sintetizador no imaginário musical do compositor nortenho, já que a maioria do material aí incluído foi criado com essas ferramentas. Entre teclados e drum machines, na compilação destes 15 anos de música de Vítor Rua – proveniente dos trabalhos Telectu Cats (2010), Computer Music (1995), Hello, I Am Mister Ed (1996) e Dance Music (1999) –, percebe-se claramente que o perfil estético e tímbrico dessas peças não se compõe de instrumentos acústicos (apesar de encontrarmos algumas modulações sintetizadas de cordas e sopros). Mesmo havendo essa linha de conexão entre os discos, a coesão de 15 anos de música não era óbvia para o músico, e é aí que surge a intervenção de José Moura e da Marte Instantânea: “[O José] disse que tinha os meus discos no Spotify (…). Depois de ouvir, ele escolheu uma série de discos, e foi ele que decidiu fazer [a compilação]. Foi ele que escolheu os temas, a ordem dos temas e que pensou que o disco fosse naquela coisa reciclável. Eu concordei com tudo e gostei de tudo”. Por vezes um olhar exterior e atento faz toda a diferença para uma melhor compreensão da obra. A surpresa pela singularidade e identidade que abrange toda a compilação foi também uma novidade para Vítor Rua, que deixa uma confissão: “Eu próprio fiquei surpreendido com a escolha dos temas e com a ordem porque realmente ficou tudo com uma coerência muito grande, sendo de anos tão diferentes”. Curiosamente, o concerto que presenciámos nas DAMAS no início deste mês seria completamente executado em guitarra, contrariamente ao esperado pelo lançamento – se formos bem a ver, tal não podia deixar de ser com Vítor Rua. Logisticamente – confessou-nos posteriormente de maneira mais informal – seria muito complicado ter tantos sintetizadores em palco, e uma interpretação na qual Rua apenas alterava alguns parâmetros do som (como ecos e modulações) seria desinteressante para si. Assim, a guitarra, em conjunto com a sua pedaleira, foi a ferramenta de eleição para explorar algumas sonoridades que, tal como em Electronic Music 1995-2010, desaguam no minimal repetitivo. Falando um pouco sobre essa noite, um loop de power chords do músico surgiu ainda se ouviam as escolhas, não-identificáveis, de José Moura, que fez o aquecimento com temas que também exploram este lado mais experimental, incapacitando-nos de situar geograficamente as suas selecções. Pelo adicionar de camadas em loops, Rua tocou guitarra, inicialmente sem grande espaço para surpresas, apenas para alguma contemplação. Com um desenvolvimento estrutural minimalista e gradual, lentamente foi-se afastando desse princípio, criando melodias frenéticas e timbres a partir do feedback.

Num segundo momento, eliminando o ataque das notas, investiu em texturas mais etéreas. Fechando os olhos duvidaríamos facilmente de que isto se tratava duma guitarra e não dum sintetizador qualquer, na verdade. Sabendo que é uma guitarra, podemos também concluir que Rua tem, além duma bagagem experiente, uma abordagem plural, variada e acima de tudo desprovida de limites. A experiência tímbrica, no entanto, não lhe despe a beleza melódica que caracteriza esta música. “Eu só tenho pena que vocês tenham de ver isto em vez do Festival da Canção”, brincava, mas estávamos bem servidos assim. A dada altura, um groove mais próximo do dub ou do trip-hop trazia o ritmo para o centro da performance. Porém, a base central óbvia nesta música de Rua, e principalmente nas suas actuações, é a improvisação. Muitas vezes joga apenas com a melodia, noutras distorce e altera a altura das notas que toca. O lado minimal repetitivo de Electronic Music 1995-2010 não se perdeu nessa noite, apenas mudou de base instrumental. A única coisa a lamentar foi o público dividido — dividido entre o muito atento e o muito falador. A reciclagem destas músicas para uma caixa de plástico reciclado reflecte um olhar para o pretérito perfeito de Vítor Rua. Reavivar e revisitar música que fez entre 1995 e 2010, mas também os seus trabalhos com Telectu, fê-lo olhar mais para os sintetizadores em contexto de actuações ao vivo e também apostar na criação colaborativa. Assim, em retrospectiva e em prospecção, afirma: “Eu cada vez mais vou dar concertos só com electrónica (já dei, estou a dar e vou passar a dar), sintetizadores digitais e analógicos, iPads, seja o que for. Concertos em que toco só electrónica e não toco guitarra. Nesse sentido, vou não só se calhar revisitar coisas dessas como também apresentar as minhas coisas novas que estou a fazer”. Além disso, dos vários projectos que tem em mãos neste momento – aponta mais de quatro a solo, a curto prazo – apenas um tem guitarras. Sobre o prazer que tem tido a apresentar Telectu a novas e entusiasmadas gerações, avisa: “a tal ponto gostei disso que formei o novo projecto, que também vai sair este ano, que é mais pop ambiental minimal ecológico – porque tem as letras e o grupo tem um teor ambiental, eco, animal nas letras. Que se chama The Banksys. Sabes aquele pintor, o Banksy? E é uma música muito bonita e agradável, minimal repetitiva, mas neo ou pós-minimal. Mas tudo com sintetizadores, tudo muito bonito”. Mas Vítor, como sabemos, é incansável e enumerou os próximos projectos que tem na calha. Entre os quais podemos referir o terceiro da trilogia dos Metaphysical Angels, Jazz Is Not Dead, It Just Smells Funny; um projecto pop baptizado The Fabulous Flower Collective – da qual a promissora formação dispõe de “uma harpista virtuosa de 15/16 anos, a Helena Espvall no violoncelo, a Bárbara do Canto Lagido na voz, Nuno Reis no trompete e eu na guitarra e electrónica.”, e no qual Rua pretende criar um sub-género dentro da pop: “10 temas dentro do pop, mas utilizando as mesmas técnicas e métodos composicionais que uso nos Metaphysical Angels, para o jazz e para a improvisada, mas na pop” –; e vários trabalhos a solo de música electrónica que poderão ver a luz do dia em CD, vinil ou cassete. A nossa conversa terminou com um olhar para o futuro da indústria musical. Ao perguntarmos sobre o contexto da música electrónica portuguesa, Rua debruçou-se sobre questões estruturais que têm caracterizado alguns dos elementos do mundo da música. Sobre o panorama actual, deixou as seguintes considerações: “dentro do lado da chamada música electrónica de dança em que se inclui o hip hop, o trip-hop, o jungle, essas coisas todas, aí o que eu acho é [que] há realmente agora pessoas novas interessantes que vieram também da tradição de outros rappers, da escola clássica dos anos 90. Como o Sam The Kid, o Chullage, o Valete. Hoje, putos como o Estraca, que têm 24 anos, têm uma intervenção política, consciência política. Em relação ao instrumental recorrem àquilo que eles têm que é os produtores como o Charlie Beats. São pessoas que realmente manipulam e trabalham nesses electrónicos, gira-discos, turntables e samplers de uma forma já muito interessante. Casos mais mediáticos, mas também que não deixam de ser virtuosos, pelo contrário são virtuosos no instrumento e assim, que pelo tipo de música que fazem conseguem abranger um número maior como aquele Stereossauro, ou DJ Ride, que usam samples do [Carlos] Paredes e da Amália.” Além da música em si, reflectiu ainda sobre a democratização da mesma e em como a tecnologia nos trouxe a um patamar cada vez mais justo de acessibilidade aos meios de produção musical: “Por exemplo, eu estou a ver que estou a grava4 esta conversa no Ableton Live, o programa que usa o Morton Subotnick, que é um dos mais importantes músicos da música electrónica de sempre da história, criador do Buchla. Aí perguntas assim: ‘então mas você não usa o Pro Tools?’. E ele: ‘não, uso o Ableton’. ‘Então e que plug ins é que usa?’, responde ‘os do Ableton Live. São fantásticos, extraordinários’. Portanto temos acesso àquilo que era impossível.” Indubitável e de valor incalculável nos nossos dias, transformando um meio que era só para alguns, numa comunidade gigantesca de criadores. Em jeito de conclusão, o que assusta Vítor Rua não são os músicos neste panorama, mas sim as estruturas da indústria. E se o Frank Zappa nos pode deixar alguma coisa (além duma assombrosa e gigantesca discografia, claro), Vítor Rua faz questão de nos relembrar. Deixamos aqui o excerto final da conversa com o produtor.
“O meu único receio não são os músicos, é a indústria musical e o que nos impõe. Por exemplo, malta nova vem-me bater nas costas e dizer ‘obrigado, Rua, pela tua geração nos ter posto a cantar em português’, e eu digo ‘olha, peço desculpa mas estás a agradecer à pessoa errada’ porque não fomos nós que quisemos cantar em português, foram as editoras que nos obrigaram a cantar em português. O Ar de Rock do Rui Veloso era todo em inglês. Foi o António Avelar de Pinho que o obrigou. Os Táxi: ‘Chiclete’ era ‘Benign’. Foi ele que levou a mudar para português. ‘Portugal na CEE’ era [começa a cantar a mesma melodia) ‘she is walking down the street all alone with a cat when I saw her I lost my mind ‘cause I never saw a girl of the kind. I said hey that’s my girl tom dom dom dom dom life is gone but love just began’. Isto era o ‘Portugal na CEE’. Em segundo lugar, o meu receio é que jovens cheios de boa vontade e com coisas originais e criativas sejam castrados e formatados a fazer o que as editoras querem. Por exemplo, fala-se dos gajos de charuto dos anos 60 que não percebiam nada de música, mas ao menos esses gajos de charuto que não percebiam nada de música, percebendo que não percebiam disso, chegavam lá os gajos cabeludos e os hippies e diziam: ‘ah, nós somos uma banda.’ ‘E como se chamam?’ ‘Led Zeppelin.’, e pronto, assinavam contrato. Não os ouviam e assinavam contrato. Qual era a lógica? Davam uma chance. Se vendessem, óptimo, ficavam na editora deles. Se não vendessem, nunca mais editava os gajos. Hoje não, hoje tem-se gajos que são especialistas e eles é que sabem o que tu vais querer ouvir. As pessoas mandam e dizem assim ‘não é disto que estamos à procura’. Eles é que sabem o que estão à procura. As grandes revoluções não são andar à procura do que as pessoas consomem agora e dar-lhes exactamente isso. As revoluções é quando estava, por exemplo, o rock sinfónico e de repente há um gajo como o Norman McLaren e que diz assim: ‘olha estes gajos, estes gajos não sabem tocar… mas pode ser a próxima onda’. O que eram? São os Sex Pistols. De repente toda a gente tem de ser Sex Pistols. E depois, de repente, há a new wave e toda a gente tem de ser a new wave. Mas há esses cortes e cá as editoras assim não têm visão. Nunca tiverem nem têm. Então agora imagina se a Björk vivesse em Portugal, naquela altura, e chegasse à editora e dissesse assim: ‘tenho aqui o meu primeiro disco’ – foi um sucesso mundial, não é? E o gajo quanto muito ia dizer ‘ok, está muito bem, mas queremos isto em português’, e nunca existiria a Björk na vida, estás a ver? As editoras não têm de impor nada. Repara, antes do Rui Veloso não se vendia nada em português, pelo contrário, era inglês. Nós cantávamos em inglês, achávamos parolo cantar em português. Depois vendeu. Como vendeu aquele, todos a seguir tinham de ser em português porque aquele vendeu (…) Ou seja, tenho confiança nos músicos mais jovens, na juventude e na nova música. O meu receio é que nas editoras não estejam essas pessoas com ideias novas, originais e capazes de arriscar em vez de continuarem a seguir o rebanho mainstream.”

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